segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Portugal: QUEM ESCREVEU O DISCURSO DE CAVACO?



Luís Osório – jornal i, editorial

No final da sua presidência, quer mudar o regime. Ficam duas interrogações...

O Presidente propôs uma reflexão a todos os portugueses. Apelou a uma discussão séria sobre o sistema político português, constatou que existe um grau de insatisfação com o regime e definiu como "repulsa" a relação dos cidadãos mais qualificados com o exercício de cargos públicos. Concluiu da necessidade de "virar de pantanas" o sistema eleitoral e dignificar a República e a relação entre eleitos e eleitores. Boas palavras, um bom discurso e duas interrogações.

Cavaco Silva falou da reforma do sistema político, mas nada disse do que julga em relação ao seu próprio papel e ao semipresidencialismo. A segunda interrogação, talvez mais óbvia (logo menos interessante), é que as palavras foram da autoria do homem que está há mais anos no poder em Portugal depois de Salazar. Com tantos anos de ministro, primeiro-ministro e Presidente, provoca estranheza a mensagem. Tão bizarro como seria ouvir Manoel de Oliveira criticar os filmes feitos com câmara fixa, não bateria certo. Dá vontade de perguntar rigorosamente o óbvio: se as coisas estão como estão, se as pessoas se estão nas tintas para os partidos, para a política e para tudo o que Estado representa, então qual o grau de fracasso da sua própria acção, senhor Presidente?

A primeira questão é mais complexa. Em vários sectores, o que foi amplificado pela visão e acção do Presidente Cavaco Silva, as dúvidas acerca do regime começam precisamente pelos limites de acção de Belém. Se as funções dos futuros Presidentes forem exercidas de um modo estritamente legalista, e o actual inquilino de Belém é constitucionalmente um burocrático, o discurso de ontem deveria ser levado às últimas consequências. Se é para discutir o sistema político português deve colocar-se em causa a eleição directa do Presidente da República - discordo, mas o tema terá de ser colocado, sobretudo se a sua função continuar a ser inócua.

A segunda é menos importante e fulanizada embora coloque um outro tema, a duração dos cargos políticos. Todos concordamos, e o Presidente Cavaco também, que existe uma discrepância entre o dizer dos eleitos e o ouvir dos eleitores; problema amplificado pelos políticos que, de tanto terem dito e feito, pouco conseguem transmitir de novo e credível quando falam. Mais uma vez o sistema político. Não seria de discutir a possibilidade de os candidatos a cargos públicos por eleição fizessem apenas um mandato? A decisão comportaria riscos, teria de ser muito discutida, mas uma vantagem seria evidente: seria mais difícil escutar o que ontem ouvimos da boca de Cavaco Silva. Um bom discurso. Mas uma mensagem que só seria credível se dita por alguém que tivesse acabado de chegar a um poder que o Presidente da República tem há mais de vinte anos.

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