terça-feira, 7 de outubro de 2014

VERDADES ENCOBERTAS DA GUERRA EM ANGOLA



Kumuênho da Rosa – Jornal de Angola

A notícia sobre os planos secretos do antigo secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger (1968-1976), contra Cuba por Fidel Castro ter decidido enviar tropas para Angola no final de 1975, provam a postura equivocada do Ocidente em relação, quer à causa do MPLA, desde os tempos da luta de libertação, quer à vocação internacionalista e solidária de Havana em relação aos povos que lutavam pela sua independência.

Segundo os documentos do Arquivo de Segurança Nacional dos EUA, revelados no livro “Back Channel to Cuba: The Hidden History of Negotiations Between Washington and Havana”, de William M. LeoGrande e Peter Kornbluh, o plano de Henry Kissinger contra Cuba incluía sanções económicas e políticas, além de ofensivas como bombardeamento de portos cubanos e ataques aéreos e navais estratégicos.

As hostilidades abertas contra Cuba vieram depois de um esforço prolongado de negociações diplomáticas secretas para normalizar as relações bilaterais, que incluíram encontros entre autoridades norte-americanas e emissários cubanos no aeroporto de La Guardia e uma sessão de negociações no Hotel Pierre, em Nova Iorque, em 1975. Contudo, os esforços de Cuba em apoio à luta anticolonial em África foram vistos como grande ameaça aos interesses dos EUA.

Fidel Castro havia decidido enviar soldados para ajudar o MPLA contra ataques de outros movimentos, apoiados secretamente pelos Estados Unidos e pelo Governo do apartheid da África do Sul. Preocupado com a possibilidade de Cuba ampliar a incursão militar para além de Angola, Kissinger aconselhou Ford a “quebrar os cubanos”, durante uma conversa em 15 de Março de 1976 no Salão Oval da Casa Branca.

Equívocos do Ocidente

Julião Mateus Paulo Dino Matrosse, actual secretário-geral do MPLA, considerou as revelações sobre os planos de Henri Kissinger como “evidências”, das muitas que vão surgindo, de que quer a causa do MPLA, de lutar pela liberdade dos angolanos e independência de Angola, quer a vocação internacionalista e solidária de Cuba, nunca foram bem recebidas pelo Ocidente.

“Aqueles que seguiram com atenção a nossa trajectória na luta de libertação nacional até chegarmos à independência, sabem que nós o MPLA fomos sempre perseguidos pelo Ocidente, na altura, taxados de comunistas. A verdade é que éramos apenas um movimento de libertação que reivindicava a independência de Angola e lutava por ela. Taxaram-nos vários nomes e fizeram de tudo para que o MPLA desaparecesse”.

O político inclui nas acções engendradas para acabar com o MPLA as várias tentativas para derrubar a liderança do hoje partido governante em Angola, desde os tempos de movimento. “Sempre quiseram mudar a nossa liderança, como aquela questão da “revolta activa” nos anos 71/72. Tudo isso para mudar um líder que dizia que nós somos nós mesmos, que lutávamos pelo nosso bem, pela nossa história e pela nossa liberdade e independência”.

Para Dino Matrosse as declarações de Kissinger, reveladas no livro “Back Channel to Cuba: The Hidden History of Negotiations Between Washington and Havana”, só atestam o que o MPLA foi dizendo ao longo da história, na altura movimento de libertação e hoje partido político. “Conotavam-nos com o mundo socialista e por isso sofremos represálias. Aguentamo-nos e hoje estamos no poder e com a força que temos. O tempo acaba por trazer à superfície os males que fizeram quer contra nós quer contra Cuba”.

Cuba paga até hoje

Dino Matrosse disse que até hoje Cuba paga um preço muito alto por defender os direitos do seu povo, a sua independência, e por ter tido sempre essa vocação internacionalista e solidária. “Cuba continua a ser castigada por essa sua vocação internacionalista e por defender os direitos do seu povo e a sua independência, e dos povos que também lutavam pela sua liberdade”.

O político recorda que a decisão de Cuba apoiar o MPLA deu início a uma história de amizade e irmandade que considerou “duradouras e indestrutíveis”. “Cuba solidarizou-se com a causa nobre do povo angolano, dando-nos todo o apoio e inclusive perderam homens no terreno. Essa amizade tornou-se indestrutível e vai desenvolver-se cada vez mais”.

Dino Matrosse lamentou que essas matérias sejam simplesmente ignoradas por alguns meios de comunicação social angolanos, alguns dos quais que, como disse, nunca compreenderam o MPLA. “Essa é mais uma verdade que vem à tona para esclarecer todos aqueles que duvidavam que nós eramos perseguidos e quase a sermos abatidos pelas forças do Ocidente. Seria bom que todos vissem e sentissem que o que o MPLA fez não foi para o seu próprio benefício, mas pela independência de Angola e o bem de todos os angolanos”, frisou.
Meias verdades

Segundo analistas contactados pelo Jornal de Angola, as revelações do livro de William M. LeoGrande e Peter Kornbluh, são meias verdades, porquanto, embora se diga que os planos secretos de Kissinger foram abandonados depois da derrota do Presidente Ford para Jimmy Carter, eis que o bloqueio económico dos EUA a Cuba mantém-se e ainda este ano foi prorrogado pelo Presidente Obama.

As mesmas fontes entendem que a tentativa (secreta) de aproximação de Washington a Havana, confirmada em documentos revelados no livro de William M. LeoGrande e Peter Kornbluh, pode ter sido uma forma de influenciar a correlação de forças em solo angolano e garantir a concretização do plano dos EUA e da África do Sul para Angola, Namíbia, Zimbabwe e toda a sub-região austral do continente.

Documentos secretos

As revelações de “Back Channel to Cuba: The Hidden History of Negotiations Between Washington and Havana” seguem as de um outro pesquisador norte-americano, Piero Gleijeses. Um professor da Hopkins University que há quase duas décadas trabalha em documentos de arquivos dos serviços secretos de vários países, principalmente dos EUA.

Numa longa entrevista que concedeu ao Jornal de Angola, publicada em Dezembro de 2008, o autor do livro “Missões em Conflito - Havana, Washington e África (1959-1976)” criticou a maneira descarada como “os poderosos” manipulam a história, de acordo com os seus interesses.  Gleijeses citou entre os exemplos de clara manipulação o livro de memórias do antigo secretário de Estado adjunto para África, Chester Crooker.

Como de resto se vê, o livro “Back Channel to Cuba: The Hidden History of Negotiations Between Washington and Havana”, em que uma das relevações é precisamente que Henry Kissinger, considerado um dos homens mais influentes do mundo, na sua época, elaborou vários planos para “esmagar Fidel Castro”, só confirma as denúncias de Piero Gleijeses.

Na conversa com o Jornal de Angola, Piero Gleijeses mostrou admiração pela coragem de Fidel Castro por ter feito uma “coisa única”: apoiar o MPLA, sublinhe-se, sem o respaldo do seu aliado natural de então, a URSS. “No seu livro de memórias, que saiu em 1999, Henry Kissinger admitiu que Fidel não enviou tropas para Angola a pedido do Kremlin, porque quando esteve em Moscovo, o secretário de Estado norte-americano perguntou a Leonid Ilitch Brejnev, que respondeu que Fidel Castro era o líder revolucionário mais genuíno no poder, naquele momento”.

Incursão encoberta

Piero Gleijeses, que foi premiado em 2003 com o galardão “Melhor Livro do Ano”, atribuído pela Associação de Historiadores da Política Externa dos Estados Unidos (SHAFR), denunciou, então, uma incursão encoberta paralela dos EUA e África do Sul em Junho de 1975. Revelou ainda que Jonas Savimbi, fundador da UNITA, colaborou com as autoridades coloniais portuguesas para tentar acabar com o MPLA, tendo viajado para a África do Sul em 1974 a fim de pedir armas e dinheiro para tomar o poder.

“Essa é a verdade e não é algo de estranhar porque Savimbi colaborou com os portugueses para acabar com o MPLA, e com os sul-africanos comprometeu-se a não permitir que a SWAPO actuasse a partir de Angola para chegar à Namíbia”, disse o pesquisador. O Governo da África do Sul pediu opinião aos EUA antes de dar uma resposta positiva em armas e dinheiro a Savimbi, contou.

Secretas alinhadas

Gleijeses considerou perfeitamente normal que na época os serviços secretos sul-africanos e a CIA tivessem relações estreitas. “Os EUA chegaram à conclusão de que deviam lançar uma operação secreta. Praticamente se decidiu aí. Era Junho/Julho (1975) e a operação estava em marcha”, acrescentou.

Mas as denúncias do pesquisador norte-americano, que nasceu na Itália, não ficam por aí. Gleijeses contou que o Governo do apartheid mandou dinheiro e armas para a UNITA e em Agosto já havia instrutores sul-africanos e oficiais paramilitares da CIA para dar treinamento. “O primeiro livro que mencionava essa operação está em afrikaans e descreve a cooperação entre os EUA e a África do Sul já dentro de Angola. Os aviões norte-americanos traziam as armas para a FNLA e UNITA aterravam no aeroporto internacional de Ndili (Kinshasa) onde aviões mais pequenos sul-africanos transportavam o material para o interior de Angola”.

Verdades documentadas

Segundo Piero Gleijeses, o que se passou em Angola entre  Agosto e Setembro de 1975 está documentado, daí ser impossível que qualquer das partes desminta. “Os norte-americanos e sul-africanos chegam à conclusão de que apesar do apoio que estavam a dar à UNITA e à FNLA, o MPLA estava a ganhar a guerra e nessa altura ainda não havia cubanos a combater”.

O pesquisador confirmou que em finais de Setembro já havia assessores cubanos em Angola. Aliás, disse, a primeira missão militar cubana em Angola começa em fins de Agosto de 1975, com a chegada do comandante Aguilar e um pequeno grupo de cubanos. “Outro grupo chega em Setembro, entre eles o general Espinosa, que vem dar treinamento aos combatentes das FAPLA. O grosso das tropas chega na primeira semana de Outubro, num total de 480 instrutores, que começaram a actuar apenas na segunda quinzena de Outubro”.

Piero Gleijeses concluiu que a ajuda em armas que mais tarde os soviéticos deram ao MPLA é de longe inferior a que os americanos e sul-africanos deram à UNITA e FNLA.  E quando os norte-americanos e os sul-africanos chegaram à conclusão de que o MPLA estava a ganhar a guerra, um grupo restrito do poder na África do Sul decidiu que além de instrutores era precisa mandar tropas para impedir a vitória do MPLA.

Vantagem do MPLA fez mossa

A situação era crítica, daí que pela primeira vez se deu uma divisão no grupo que assessorava o então Primeiro-Ministro sul-africano. “O pessoal da Inteligência e a gente da Chancelaria desaconselharam o envio de tropas, mas o ministro da Defesa Pik W. Botha e o pessoal do Exército, diziam que era necessário enviar tropas”. O pesquisador fala em documentos que comprovam que Pretória consultou Washington, que pediu: “por favor enviem tropas’”  “Foi uma acção conjunta. É preciso perceber que a África do Sul não actua a mando dos Estados Unidos, actua pelo seu próprio interesse, mas muito claramente estava implícito que ao invadir Angola, os EUA lhes haviam dito que “não estavam sozinhos”.

Sempre apoiado em documentos, Piero Gleijeses assinala que quando a África do Sul invade Angola, a 14 de Outubro de 1975, houve uma mudança significativa no curso da guerra. “Já não eram somente os bravos combatentes das FAPLA contra a FNLA e a UNITA. Era as FAPLA enfrentando uma coluna sul-africana, motorizada e com helicópteros, em clara superioridade”.

Na visão de Gleijeses, era natural que as FAPLA tivessem dificuldades para deter o “avanço veloz” dos sul-africanos, que entraram pelo Cunene, depois viram à esquerda e ocupam Benguela, Lobito, e seguiram avançando até ao Norte. “Foi aí que, respondendo a um pedido de Agostinho Neto, a 4 de Novembro de 1975, Fidel Castro decide enviar tropas a Angola para travar o avanço sul-africano”.

Kissinger surpreendido

O professor Gleijeses disse que em pelo menos dois livros lançados na África do Sul, em afrikaans, é “possível comprovar” que quando eles falam da decisão sul-africana de entrar com tropas em Angola, não lhes ocorria a presença de instrutores cubanos.

 “Decidiram invadir Angola porque o MPLA estava a ganhar a guerra, mas ignoravam completamente esse facto, até mesmo os americanos sequer imaginavam que Cuba fosse intervir”.

Ainda em Maio de 1975, Henry Kissinger criou um grupo para analisar a eventual necessidade de se realizar uma operação encoberta em Angola, referiu Gleijeser. “Quando criou o grupo levantaram-se questões que tinham de ter resposta. Por exemplo,  como reagiria a União Soviética e os países da Europa oriental a essa operação”, acrescentou.

Decisão de Fidel

Segundo Gleijeses, as transcrições dos encontros do grupo criado por Kissinger, constam de documentos hoje desclassificados em Washington. “Ali não se faz qualquer referência a Cuba, o que demonstra que Cuba apenas intervém com tropas para parar a invasão sul-africana a pedido do MPLA e do Presidente Agostinho Neto”.

Gleijeser vai ainda mais longe e sublinha que Fidel Castro decide intervir sem informar os soviéticos, pois sabia muito bem que os soviéticos poderiam estar contra. “Os soviéticos ficaram tão molestados com isso que demoraram até ao dia 9 de Janeiro de 1976, praticamente dois meses, para dar apoio logístico a Cuba para a ponte aérea”.

Segundo o pesquisador, antes de obter a ajuda soviética Cuba enviou tropas de barco e  de aviões que necessitam de abastecer pelo menos duas vezes. “Era um martírio porque havia apenas uma única paragem segura que era o porto de Conacry ou de Bissau. Havia ainda o porto em Barbados, mas os americanos aperceberam-se disso e caíram-lhes em cima e Barbados encerrou o porto, o mesmo aconteceu no Ghana. Portugal ainda permitiu que os aviões cubanos pousassem nos Açores, mas os americanos aperceberam-se e encerraram os Açores.

As revelações feitas por Piero Gleijeses permitem, pois, dimensionar a irritação de Henry Kissinger em relação a Fidel Castro. Definitivamente não foi por se tratar de uma desfeita por parte do líder de uma “pequena ilha” caribenha. Havia mais em jogo.

Na foto: Agostinho Neto e Fidel Castro - JA (arquivo)

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