segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Macau: DA DEMOCRACIA E DE OUTROS DEMÓNIOS

 

Marco Carvalho – Hoje Macau, opinião
 
Das forças e pulsões que nos consomem, a inquietude é a que melhor nos serve. É uma força mobilizadora, a resposta natural do espírito ao que se desconhece ou ao que se não pode controlar. A morte, a antecipação da ausência, o envelhecimento, o desconcerto do mundo, a erosão do conhecimento e dos sistemas de crença são factores universais de inquietação. Os residentes de Macau andam inquietos, a julgar pelos resultados de um par de inquéritos, um conduzido pela Universidade de Hong Kong, o outro pela Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, instituições circunspectas e até evidência em contrário entidades acima de qualquer suspeita.
 
A requentada problemática dos preços da habitação, reporta a instituição de ensino superior do território, fere de morte a crença que o futuro da RAEM nos reserva a todos dias mais confortáveis. Os índices de confiança dos consumidores de Macau andam pelas ruas da amargura e o exercício improvável de se sonhar com casa própria sem naufragar num mar de inquietações é um atentado à tranquilidade de uma boa parte da população. Num recanto do mundo onde o desafogo financeiro persiste e a aritmética das contas se produz com parcelas quilométricas, a erosão da tranquilidade é a mais desconcertante evidência de que o governo não cumpre o seu papel.
 
Desconcertante, ainda que por outros motivos, o inquérito conduzido pelos investigadores do Programa de Opinião Pública da Universidade de Hong Kong confirma também que os índices de confiança da população de Macau entraram em declínio e atesta o inatestável. Ao que parece, os residentes do território andam desiludidos – pasme-se – com os princípios de democracia e a vivência democrática.
 
A história da governação, como meio de orientação e de elevação das sociedades, foi ao longo de milénios um relato de desequilíbrio e barbárie, de conflito e de relações brutais de poder em que o indivíduo e o pressuposto do individual não têm lugar. Em milénios de canalhocracia, contam-se apenas duas experiências significativas do que se pode definir como democracia. A primeira teve a Atenas clássica como palco e perdurou por pouco mais de um século e meio; a segunda está em rápida erosão e tem o que se convencionalizou chamar de Ocidente como principal protagonista. Se resumirmos a ideia de democracia ao paradigma simplista de um cidadão, um voto, a vivência democrática nos Estados Unidos da América – o paladino bélico-moral do sistema – tem pouco mais de nove décadas em teoria e quase meio século na prática, dado que só em 1965 foi aprovado o Voting Rights Act e sancionado o direito ao voto da população negra. Pelo mesmo termo de comparação, a experiência democrática em Portugal é uma realidade ainda mais incipiente, forjada que foi no dealbar da madrugada inteira e limpa que pautou o mais essencial virar de página na história de um país que sempre conviveu mal com o preceito das liberdades civis.
 
Um tal virar de página não teria hoje a si inerente, porventura, um tão arreigado capital de esperança. A maturação doutrinária dos princípios e ideais democráticos teve no pós- Segunda Guerra o seu período áureo, não apenas como resposta óbvia aos horrores perpetrados, mas também como alternativa ao sincretismo utilitarista dos ideais comunistas. Durante quase meio século, mais do que um inimigo confesso, o Ocidente teve na União Soviética um referente ideológico que importava desdizer e contrariar. O que a história recorda como “guerra fria” e os manuais escolares definem como um diálogo de surdos garantiu aos trabalhadores da circunspecta Inglaterra ou da libertária França benesses hoje fragilmente adquiridas como o subsídio de férias, o décimo terceiro mês ou a semana de trabalho de 40 horas. Erroneamente aplaudida como sendo uma grassa vitória dos princípios democráticos, a perestroika e a queda da União Soviética privou as democracias do Ocidente da incómoda sombra que lhes insuflava integridade e plenitude. Sem um antagonista moral forte, o estado democrático tergiversou, sucumbiu a interesses e grupos de pressão e colocou em cheque a própria ideia de democracia, ao reduzir os ideais democráticos à sua acepção mais folclórica e à premissa de que no direito ao voto se condensa a mais essencial das liberdades. Permitir que o povo eleja quem o governa não é necessariamente o mesmo que governar com e para o povo, como a União de todas as austeridades Europeias tão mal tem demonstrado ao longo dos últimos anos, prestando um péssimo serviço e uma pior homenagem aos ideais democráticos.
 
Ignaro me confesso. Desconheço o alcance da definição de democracia sob a qual se alicerça o inquérito conduzido pelo Programa de Opinião Pública da Universidade de Hong Kong, mas uma instituição acima de suspeita, com uma reputação e um nome a defender, tem a responsabilidade de saber e fazer melhor. Perguntar a um residente de Macau se os “ideias democráticos” que por cá se comungam o satisfazem é o mesmo que perguntar a um refugiado do Sudão do Sul ao que sabe o caviar. Inquietos, nem um nem outro saberão responder. Um nunca provou democracia. O outro nunca saboreou caviar.
 

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