Hoje não há
cirurgias de rotina no Hospital São Paulo
JOANA GORJÃO HENRIQUES (em
São Paulo) - Público (pt)
Nas ruas, os
brasileiros gritam por um melhor sistema de saúde. Os hospitais são maus, não
há médicos que cheguem, as urgências estão entupidas, dizem. O PÚBLICO entrou
num dos grandes hospitais em São Paulo: corredores com macas, cirurgias de
rotina canceladas por falta de material. Uma situação “normal” que decorre de
um “modelo inadequado”, diz especialista.
Aos 21 anos Flávio
Santos coxeia. Tem uma tatuagem que se enrola pela perna direita; a esquerda,
hirta, está marcada por manchas. Flávio tem também gravados, em cada um dos
braços, sob o comprido, os nomes dos pais: William e Ivonete. As tatuagens
foram um presente do pai antes do acidente que teve quando ia a guiar uma moto
a 17 de Novembro de 2012, numa estrada de São Paulo.
Nesse dia, Flávio
foi levado para um dos maiores hospitais públicos brasileiros, bem no centro da
cidade, o Hospital São Paulo – Hospital Universitário da Unifesp
(Universidade Federal de São Paulo), também um centro de formação de médicos e
outros profissionais de saúde que serve cerca de cinco milhões de pessoas.
O pai estava em
casa quando, à noite, recebeu um telefonema da polícia a avisá-lo do desastre.
William não se apercebeu da gravidade da situação, mas correu para a delegacia.
Lá, disseram-lhe que a perna de Flávio tinha sido amputada. Flávio tinha assinado
um termo de responsabilidade para que os médicos lhe fizessem a operação.
“Falaram que a minha perna não tinha mais jeito e era para assinar a
autorização para amputar. Eu assinei. Estava meio grogue por causa do acidente,
perdi muito sangue e estava meio anestesiado”, lembra.
Mas, segundo
William, apenas um dos três médicos da equipa era a favor da amputação – de
modo que os pais chegaram a tempo de salvar a perna do filho, que tinha “uma
fractura exposta”, e a amputação foi cancelada. Flávio seria assim submetido a
uma cirurgia durante oito horas. Ficaria internado por 19 dias, dividindo
o quarto com mais três doentes, de várias idades.
Desse tempo
lembra-se que as refeições e os medicamentos vinham sempre a horas. Mas, de
noite, havia enfermeiros que desligavam a campainha e quem quisesse beber água
ou precisasse de ajuda para ir à casa de banho tinha de esperar que eles
acordassem. A família fez queixa, mas o serviço melhorou apenas um pouco:
ficou, para Flávio, com classificação de dois numa escala de dez. “Tinha
gente que chamava a enfermeira para ir no banheiro e ficava uma hora à espera”,
conta ele. Houve um dia que a pessoa que fazia visita a outro doente teve de ir
à rua comprar uma garrafa de água para Flávio – ninguém lhe trazia nada para matar
a sede.
Agora, mais de um
ano passado sobre o acidente, e três cirurgias depois, o risco de infecção
óssea (osteomielite) fez com que voltasse de novo ao Hospital São Paulo. Flávio
lá anda, amparado por uma muleta, amparado pelo pai que faltou ao trabalho e
veio acompanhá-lo para garantir que ele faz aquilo que tem de ser feito. “É
muito teimoso” – e não obedece à mãe.
O material de
osteossíntese (vulgo, parafusos de fixação da fractura), que lhe colocaram na
perna, provocou a infecção. Há seis meses que espera uma nova cirurgia, conta a
mãe, e mesmo assim “tem gente que fica anos esperando”, quando afinal ele até
está em vias de conseguir ir para a sala de operações.
Saíram de casa
cerca de uma hora antes de ali chegarem às 6h20. Estiveram quase quatro horas
para serem atendidos, até que a médica os mandou para o serviço de ortopedia
tentar marcar a cirurgia. “Mas ela não sabe se é possível porque falta
anestesista”, explica Ivonete, que leva na mão um saco de plástico com os
exames de Flávio e está agora na fila para abertura de ficha de doente.
Ivonete, 37 anos,
mãe aos 16, é dona de casa, classe baixa, como se classifica, porque a moradia
onde vive até pode ter três andares e uma grande varanda, mas fica na periferia
– e aos seus olhos a localização não lhe permite subir degraus na escada
social. O marido, 37 anos, fiscal de obras, diz que a “classe C hoje está mais
favorecida”, “estão dando condições que antigamente não davam”. Mas não chega
para ter um seguro de saúde. William não quer que a mulher trabalhe, quer que
ela cuide dos filhos e do marido – e ela acostumou-se, diz-nos.
O tempo passa,
Flávio senta-se, depois levanta-se. Já são quase 13h. Mais de seis horas de
espera. “Se ele não arranjar anestesista, vai ser complicado”, diz a mãe. “Na
semana que vem fazemos nova consulta, até conseguirmos. A gente pode dar sorte
e conseguir hoje, como pode tentar três, quatro, cinco vezes e não conseguir…
Pelo que a médica falou, tem gente que fica um, dois anos esperando…”
Entra Flávio, a mãe
e o PÚBLICO. Os médicos são todos jovens, incluindo o que atende Flávio – faz
perguntas de rotina ao paciente. Depois informa-o: há a hipótese de ele ficar
internado, mas terá de ficar a dormir numa maca, no corredor, e ele não garante
por quanto tempo – se uns dias, se mais do que uma semana – e quando é que
pode ser operado. “Hoje não será com certeza, foram canceladas todas as
cirurgias electivas [que não são urgentes]”, diz. Há falta de luvas e
outro material esterilizado.
O médico fala
connosco abertamente, diz que esta situação de escassez e sobrelotação tem de
ser relatada, mas mais tarde dirá que não quer ver o seu nome no jornal.
Subimos, então, aos
andares para onde foram levados os doentes. Macas com doentes, alguns a soro,
em fila, encostados à parede. Novos e velhos, pessoas mais prostradas que
outras. O calor propaga-se pelas salas neste Verão em São Paulo, que é um dos
mais quentes dos últimos anos. Há quem tenha trazido óculos de sol para
escurecer a luz que vem do tecto. São pelo menos 50 doentes ao longo dos
corredores dos diversos serviços.
Numa sala que
deveria ser de espera há gente sentada a dormir em cima de malas, e a ser
atendida ali mesmo – o ar condensa-se naquele espaço fechado.
Passam enfermeiros,
passam médicos, passam acompanhantes. Não fosse o gravador na mão e ficaríamos
muito mais tempo entre os pacientes – até que um segurança nos expulsa. O
médico, entretanto, comentara o que íamos vendo e o facto de as macas se
espalharem pelos corredores. “É ruim porque não é acomodação própria. O maior
risco é infecção, não é tão alto, se se tomarem as devidas precauções”,
reconhece o jovem clínico, que trabalha ali há um ano e critica o facto de
não haver “infra-estrutura”.
No serviço de
ortopedia, por exemplo, não há camas suficientes para o número de doentes, diz
o médico – são 26 – e “este é dos maiores hospitais do país”. “[E] a gente
não tem só as urgências para operar, tem os pacientes com cirurgias electivas;
por isso a fila dos ambulatórios não anda.” É comum deixar os doentes à espera
no corredor, relata, e Flávio pode ficar mais do que uma semana. Mas “a ver se
a gente consegue operar antes”, diz, enquanto atravessamos os corredores.
Momentos antes, lá
em baixo, Ivonete tentara convencer o filho: é melhor ficar, nunca se sabe
quando irá ter vaga. Flávio hesita: não vai dormir de noite, com gente a passar
nos corredores, vai comer mal e sabe-se lá até quando é que isso dura. “É um
risco que ele tem que correr”, diz a mãe.
O médico irá,
então, pedir autorização para o internamento. Um outro paciente conta a esta
família que ficou na fila de espera durante oito anos – como não era urgência,
nunca conseguia vaga, ou porque não havia cama, ou porque não havia material,
ou por outra razão… Chegou a ser chamado várias vezes para a operação – que
logo a seguir seria cancelada. “Prefiro ficar no corredor [do que ir para
casa]. Se ficar no corredor, pelo menos sou operado”, diz.
Flávio fica
convencido. E à mesa do almoço, já pelas 14h, enquanto o médico está a
preencher os requisitos para o internar, confessa que ouvir aquela história lhe
deu algum optimismo: afinal está à espera só há uns meses, o outro esperou oito
anos.
O Hospital São
Paulo disse ao PÚBLICO, através do gabinete de imprensa e por email, que nesse
dia “houve um problema de desabastecimento pontual” – sem especificar. “Nesse
período, foram canceladas somente as cirurgias electivas. Todos os
procedimentos de urgência e emergência foram realizados. Esse problema foi
solucionado completamente e, actualmente, encontra-se totalmente abastecido.”
A instituição reclama
ser de “referência”, “não só do município de São Paulo como também do estado de
São Paulo e outros estados”; por isso, está “sempre em condições de
superlotação”, mas tem feito um esforço “para que os pacientes permaneçam o
mínimo de tempo possível em macas ou cadeiras”.
Em São Paulo
58% com macas nos corredores
No ano passado, o Cremesp, Conselho Regional de Medicina de São Paulo, visitou
mais de 70 hospitais e encontrou quase 58% deles com macas nos
corredores.
O sistema de Saúde
e a qualidade do atendimento nos hospitais públicos no Brasil estão entre os
alvos das críticas mais ouvidas, sobretudo nas manifestações. Os brasileiros
querem maior investimento na Saúde: em 2009, o investimento no sector no Brasil
representou 8,8% do produto interno bruto (em Portugal, nesse ano, foi de
10,2%).
Com uma população
de 200 milhões, o Brasil tem 6384 hospitais, 69,1% deles são privados – e só
35,4% das camas estão no sector público, embora depois 38,7% das camas dos
hospitais privados estejam disponíveis para o Serviço Único de Saúde, segundo o
estudo O Sistema de Saúde Brasileiro: história, avanços e desafios,
publicado na revista especializada The Lancet em Maio de 2011.
Sendo um quarto dos
hospitais públicos controlados pelos governos municipais, 60% têm 50 ou menos
camas – no Hospital São Paulo há 82. “A oferta de camas do sector público não é
suficiente”, escreve-se no estudo, referindo que o Brasil só tinha 1,9 de camas
em hospitais públicos por cada mil habitantes (dados de 2009) – em Portugal é
de 3,3, segundo a OCDE. Este número de camas hospitalares era, entretanto, o
número mais baixo de todos os países da OCDE, à excepção do México. De acordo
com outro estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Síntese
de Indicadores Sociais 2013, o número de médicos por cada mil habitantes no
Brasil é de 1,9 (dados 2011), mas em São Paulo – o estado mais rico do Brasil –
era de 2,6 (em Portugal são cerca de 4 por mil, dados Pordata).
“Médicos por leito,
médicos por habitante: isso não diz nada, porque depende do modelo de
atendimento”, afirma ao PÚBLICO, por telefone, o especialista brasileiro em
políticas da Saúde Eugênio Vilaça Mendes.
A falta de camas é
uma situação comum nos hospitais brasileiros, comenta, por vezes tem a ver com
o desequilíbrio entre oferta e procura, mas está bastante ligado a um modelo
que considera “inadequado”. Para este consultor da Organização Pan-Americana de
Saúde-OPAS (da Organização Mundial de Saúde) e autor de estudos como As
Redes de Atenção à Saúde, o país “precisa de investir fortemente nos centros de
saúde”. Alterações que deveriam ser feitas: organizar melhor a triagem de
doentes nos hospitais, por exemplo, através do sistema de cores. Grande parte
das pessoas nas macas deveria estar em centros de saúde, diz. Outra razão para
existirem doentes em macas: a oferta de camas nos cuidados intensivos
geralmente é pequena e, como o Ministério da Saúde não paga cuidados
intermédios, os cuidados intensivos entram em sobrecarga.
Vilaça Mendes
explica que as mudanças nos últimos anos no Brasil não foram acompanhadas por
uma alteração da concepção da Saúde: o país passou por transições demográficas
muito rápidas, como o envelhecimento da população, “em 15 anos a população
idosa vai dobrar”, o que “significa mais doenças crónicas.” Além disso, “metade
dos brasileiros e um terço das crianças têm sobrepeso ou obesidade e isso leva a
mais doenças crónicas”. E que ligação tem isto com o modelo de sistema de Saúde
brasileiro? É que é voltado para a “condição aguda, não dá conta da condição
crónica”, e isso “pressiona os hospitais”, lugares de excelência de tratamento
da condição aguda.
Quanto à
possibilidade de erro médico, ela é comum em qualquer lugar, mas no Brasil
“falta uma política de segurança do paciente que reduza” as suas
“possibilidades”. Estatísticas rigorosas sobre mortes por erro médico, como
existem nos EUA, não há no Brasil, acrescenta.
“A política de um
programa de qualidade hospitalar começa a existir no Brasil, mas precisa de ser
melhorada. Em seis mil hospitais, nem 5% estão acreditados [por uma organização
que aplica testes de qualidade]”, acrescenta.
Quanto ao cancelamento
das cirurgias electivas no Hospital São Paulo, Eugênio Mendes explica-o com o
facto de os hospitais públicos serem, por regra, muito burocráticos, o que faz
com que todas as licitações sejam demoradas. O grande problema do sistema de
Saúde brasileiro é o investimento público, diz. Segundo a Organização Mundial
de Saúde, o gasto médio público mundial com a saúde de cada cidadão foi de 571
dólares por ano (415,50 euros) em 2010. O Brasil gastava 466 dólares por
ano, enquanto os EUA 3,7 mil dólares e a Holanda 4,8 mil.
Na foto: Protestos
contra o Mundial de futebol a exigir mais dinheiro para a Saúde UESLEI
MARCELINO/REUTERS
Título PG –
Cortesia: Alberto Castro
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