sábado, 5 de julho de 2014

O significado para mim das comemorações da independência em S. Vicente



Cabo Verde

Ilídio Cruz – A Semana (cv), opinião

A transferência emblemática da capital do país para S. Vicente para a comemoração dos 39 anos da Independência nacional e início das atividades que assinalarão (espera-se que em grande) no ano seguinte os 40 anos do nosso nascimento como Estado soberano, reveste-se de uma importância e de um simbolismo nacionais evidentes a todos os títulos. Não apenas pelo acto em si, mas também pelo facto do mesmo ter lugar na ilha que acolheu o primeiro Conselho de Ministros fundador do Estado de Cabo Verde que se realizou no dia 7 de Julho de 1975.

É ainda significativo e simbólico pela circunstância de ocorrer num momento - e na ilha - que mais reivindica o aprofundamento de descentralização e quiçá da desconcentração dos poderes, princípio com o qual todos parecem estar de acordo, sem prejuízo de não estar - e dever ser - clarificado o modelo, o processo, os meios, os impactos, os poderes e os recursos financeiros que, quer o Estado central, quer os municípios, estão dispostos a perder para as regiões e onde ir buscar o dinheiro necessário para sustentar as eventuais novas máquinas administrativas e "classe burocrática" que surgirão a acrescer as actuais. O povo de todas as ilhas de Cabo Verde viveu de forma única e emocionada o momento da fundação do Estado de Cabo Verde aquando da Independência em 75. As outras ilhas terão igualado S. Vicente no movimento imparável que então se criou por todo o Cabo Verde, mas certamente nenhuma outra a terá superado na forma verdadeiramente impressionante como abraçou a Independência. S. Vicente é emblemático ainda, por muitas outras razões certamente, mas em particular pelo facto de ter acolhido em 1989 - no prelúdio da democracia - a comemoração central das festas da Independência que culminou com as primeiras eleições pluripartidárias em 1991.

Portanto, no momento em que queremos dar o pontapé de saída para as comemorações dos 40 anos da Independência Nacional, em que queremos regressar à boa prática de a cada ano comemorar a Independência numa ilha diferente, aproximando o poder central das ilhas e fazendo com que cada uma acolha e revisite o arrepiante instante da fundação da República - a cola que nos uniu para sempre - bebendo daí as energias para continuarmos a trilhar com sucesso os caminhos do futuro, enquanto comunidade de destino, não podia ter mais significado a ocorrência deste acto maior da nossa história em S. Vicente.

A reunião simbólica dos membros do actual Conselho de Ministros com os do primeiro Governo pós Independência que se reuniu pela primeira vez em Mindelo, há 39 anos, para falarem, quiçá, do ponto de partida, do caminho percorrido, dos desafios do presente e do futuro, da necessidade de continuarmos juntos a caminhada focando-nos naquilo que nos une, praticando, sem exacerbar, as nossas divergências - o sal da nossa democracia - seguido da condecoração dos mesmos, é igualmente de um valor histórico incontornável. Ela é reveladora do direito/dever de preservação da história e da memória, de respeito e reconhecimento por todos os Fundadores da República, ainda que muitos desses Fundadores não tenham feito parte do então Governo. Explicita o sentido de justiça, a ideia da liberdade e da democracia, apela à tolerância, ao respeito pelo outro, à humildade. Rejeita a ideia de verdade absoluta ou da infalibilidade de qualquer ideia, teologia ou "ismo", como nos lembra o Presidente Obama, quando no seu livro "Audácia da Esperança, Para Recuperar o Sonho Americano" tenta perscrutar valores comuns partilhados pelos Pais Fundadores da União que lhes permitiu desenhar a Constituição, aprovar a Declaração da Independência e desenhar o complexo sistema de pesos e contrapesos do poder que subsiste há mais de 200 anos e serviu de modelo para muitas democracias mundiais. E, no entanto, ao tempo, em 1789, o espírito de liberdade não se estendeu, na mente dos Fundadores, nas palavras do historiador Joseph Ellis, "aos escravos que lhes trabalhavam os campos, lhes faziam a cama ou lhes criavam os filhos". "A sofisticada maquinaria da Constituição asseguraria os direitos dos cidadãos, esses membros da comunidade política da América, mas não oferecia protecção àqueles que estavam fora do círculo constitucional - os nativos americanos, cujos tratados se revelaram sem valor perante o tribunal do conquistador, ou do negro Dred Scott, que entraria no Supremo Tribunal como homem livre e sairia de lá como escravo".

Na celebração da Independência lembremo-nos da longa noite colonial a que estivemos submetidos e que só conheceu a manhã a 5 de Julho de 75. Lembremo-nos das fomes que dizimaram as nossas gentes. Lembremo-nos do Desastre da Assistência cantada por Codê di Dona. Lembremo-nos da saga da emigração forçada para as roças. Lembremo-nos da falta de cidadania e da liberdade, da dificuldade de acesso à escola, à saúde e à justiça para a maioria dos cabo-verdianos. Lembremos que poucos acreditavam na viabilidade do Pais. Lembremos do caminho percorrido e celebremos com júbilo e sentido de gratidão para com aqueles, como Amílcar Cabral e todos os demais "Pais Fundadores da República" que ousaram desafiar o destino e tornar possível a Independência - sem a qual a democracia não seria possível - pagando por ela um elevado preço, muitas vezes a própria vida.

Este percurso histórico e a comunidade de valores partilhados que gerou é o cimento que nos une e dá sentido às nossas divergências. De outro modo as nossas competições não têm razão de ser.

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