Guillermo
Almeyra – Diário Liberdade, 13 Outubro
Hong-Kong
é uma das mais prósperas cidades chinesas, mas um quinto da sua população vive
abaixo do limiar da pobreza. As contradições criam uma mistura explosiva de
reivindicações democráticas, laborais e salariais.
Hong
Kong não é, pela sua história e pelo seu relativo isolamento da China profunda,
igual a esta, mas faz parte dela apesar do seu regime especial. Ainda sob a
ocupação inglesa, entre as décadas de 1920 e 1950, nos tempos da ditadura de
Chiang Kai-Shek, tinha alguma margem de liberdade da qual não dispunha o resto
da China, que o acordo de reunificação entre a oligarquia financeira da
ex-colónia e o governo de Pequim restringiu mas não suprimiu.
Essa
é a base histórica da atual rebelião estudantil e da classe média mais
acomodada, apoiada pelos sindicatos livres de trabalhadores que, diga-se de
passagem, não existem na China continental. Na China moderna, desde Sun Yat-sen
até à fundação do Partido Comunista pelo professor Chen Duhsiu na Universidade
de Pequim, as rebeliões democráticas e sociais tomaram sempre a forma de
explosões de rua encabeçadas pelos estudantes (Mao Tsé Tung e Chu En Lai também o eram) e
depois, ao se desenvolver, contagiam os sectores mais avançados dos oprimidos
das cidades, grupos importantes de operários e outros trabalhadores, que
estendem e aprofundam o movimento. Daí o silêncio das autoridades de Pequim
perante os acontecimentos de Hong Kong, para evitar qualquer possível contágio.
Hong
Kong é uma das mais prósperas cidades chinesas, mas um quinto da sua população
vive abaixo do limiar da pobreza, os salários médios são de pouco mais de três
dólares diários e os trabalhadores não têm nem subsídio de desemprego, nem
pensões de reforma, nem sindicatos, nem contratos coletivos de trabalho. Os
níveis de cultura e de informação, superiores aos da China continental, chocam
violentamente com a concentração da riqueza e com a corrupção da oligarquia
capitalista que governa a cidade, sob controle remoto de Pequim. Isso cria uma
mistura explosiva de reivindicações democráticas, laborais e salariais que põem
em primeiro plano, juntamente com os ritmos e as condições de trabalho, as
diferenças sociais e o protesto contra a concentração do poder nas mãos da
oligarquia. Dito de outra forma, o controle democrático do governo da cidade e
a sua autonomia.
As
regras impostas a partir de Pequim para eleger o novo governo local entre seis
candidatos com a aprovação política do governo central chinês provocaram a
explosão dos jovens estudantes que a repressão policial ampliou e estendeu.
Perante a incapacidade das autoridades chinesas fazerem promessas ou concessões
e perante as ameaças de maior pressão, as coisas chegam agora a um ponto de
grande tensão. Ou Pequim faz intervir o exército, como o fez em Tiananmen,
provocando um novo massacre que prejudicaria gravemente o prestígio da China,
num momento em que enfrenta uma grande pressão dos Estados Unidos e dos aliados
desse país no Pacífico e no próprio Mar da China, causando também uma fratura
no grupo dirigente do partido entre duros e moderados. Ou, pelo contrário, faz
concessões parciais e de última hora que poderão fazer retornar a calma por uns
meses, mas incentivarão novos protestos, porque aparecerão como arrancadas
pelas mobilizações, as quais poderão assim estender-se a outras cidades.
O
conflito em Hong Kong
estoirou quando a economia chinesa, que continua a crescer, perde impulso e
deve enfrentar a ameaça de uma grande bolha imobiliária, provocada pela
especulação que criou cidades novas sem habitantes, enquanto a habitação é cada
vez mais cara nas cidades costeiras e em Hong Kong. Começa
quando surgem problemas étnicos entre a maioria han e as minorias, sobretudo
nas regiões fronteiriças como o Xinjiang ou o Tibete. Surge sobretudo quando
milhares de greves selvagens sacudiram o país em protesto contra as condições
de trabalho ou a brutalidade das direções e, em geral, alcançaram as
reivindicações e quando se deram protestos massivos vitoriosos de comunidades
camponesas ou de pescadores contra a expropriação das suas terras.
O
feroz desenvolvimento capitalista, sem regras e com grande peso do capital
estrangeiro, exacerbou as contradições entre as regiões costeiras e as do
interior, entre as cidades e o campo, entre o centro povoado pelos han e a
periferia, entre a industrialização e o meio ambiente. Sobretudo, transformou o
Partido Comunista de Mao no protetor dos seus membros multimilionários, cujos
escândalos, corrupção e luxo extremo se opõem frontalmente à moral confuciana
conservadora e tradicional promovida oficialmente desde o início da revolução e
o estilo de vida da maioria do país ainda camponesa. Problemas como o da
habitação, a contaminação do ar ou a falta de liberdades afetam além disso por
igual as classes médias urbanas e os operários, que sofrem com os baixos
salários, as condições de trabalho esgotantes e o despotismo dos dirigentes.
Aqueles
que em Pequim, a partir do Partido Comunista, dirigem o país dão-se conta de
que estão a caminhar por um terreno minado. Daí, por exemplo, a defenestração
de Bo, o neomaoísta, ou as diferenças permanentes entre duros e liberais, mas
os seus privilégios e a sua arrogância negam-lhes sensibilidade e flexibilidade
suficientes para fazer concessões democráticas a tempo.
É
claro que as provocações militares e marítimas dos Estados Unidos e a ação dos
serviços britânico e norte-americano em Hong Kong e na China continental atiçam o
descontentamento para debilitar o mais importante país do grupo BRICS que, além
do mais, é o principal apoio de Putin e do Irão. Mas os problemas são chineses
e só na China podem ter uma solução nacional, democrática e social. Até agora,
pelo bloqueio de informações, o resto da China nem sequer conhece o que se
passa em Hong Kong ,
que é uma cidade atípica, mas não tardará a estar informado e a reclamar
sindicatos independentes, melhores condições de trabalho e liberdades
democráticas. A chispa estudantil poderá abrir o caminho aos operários e
camponeses chineses.
Artigo
publicado no jornal mexicano La
Jornada em 5 de outubro de 2014. Tradução de Carlos Santos para
esquerda.net
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