quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

HOLLANDE À PROVA

 


Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião
 
Sejamos claros: a viragem de François Hollande ilustra bem a gravidade do impasse que vive hoje o socialismo democrático, que em termos europeus se designa por "social-democracia". Este impasse decorre sobretudo de ele se ter tornado, nas últimas décadas, uma ideologia sem verdadeira doutrina, que oscila entre o radicalismo mais ou menos declamatório quando está na oposição e um conformismo mais ou menos gestionário quando chega ao poder.
 
Nas vésperas da sua eleição, em maio de 2012, numa conversa com Edgar Morin publicada pelo jornal Le Monde, François Hollande definia como o objetivo nuclear do seu futuro mandato, e cito, "fazer que a democracia volte a ser mais forte do que os mercados, que a política retome o controlo da finança e o domínio da globalização".
 
A audácia destes objetivos levou-me na altura a perguntar, aqui mesmo, se não se trataria de uma missão extraordinária para um Presidente que se autoproclamava como normal - o tempo tem, infelizmente, vindo a confirmar as minhas dúvidas.
 
Dois pontos justificavam estas dúvidas. O primeiro é que François Hollande venceu as eleições presidenciais sem na verdade ganhar a batalha das ideias: os resultados da primeira volta deixavam antecipar este facto ao dar a F. Hollande o bom resultado de 28,63% num total em que, contudo, a direita toda junta tinha mais votos (47%) do que toda a esquerda(43%). E sem a batalha das ideias ganha, todos os triunfos são frágeis e fugazes.
 
O segundo é que a vitória final de François Hollande frente a Nicolas Sarkozy estava minada pela profunda crise do socialismo democrático europeu, que desde a década de 80 do século passado se foi revelando incapaz de compreender os múltiplos acontecimentos com que a história o foi surpreendendo, e de as integrar num projeto credível e mobilizador.
 
A crise da social-democracia europeia traduziu-se, por isso, numa capitulação face à ascensão e à disseminação de um novo imaginário ideológico liberal, que conseguiu impor sobretudo duas ideias: a da necessidade de desmantelar o Estado-Providência, por um lado, e a do reforço dos direitos individuais, por outro.
 
A sua grande astúcia deste liberalismo esteve justamente aqui, no modo como a erosão da ideia de coletivo e a destruição do mundo comum foram sendo tacitamente aceites por um número crescente de cidadãos, a troco do maior reconhecimento dos direitos individuais e do reforço da liberdade individual, na linha da famosa proclamação de Margaret Thatcher, "a sociedade não existe, só existe o indivíduo". Este processo tornou-se, de resto, muito visível na crescente consagração do estatuto do consumidor e dos seus direitos, que desde os anos 80 do século passado foi paulatinamente substituindo nas sociedades contemporâneas, e nomeadamente nas europeias, a figura e as funções que tradicionalmente definiam o cidadão e os seus deveres.
 
E a social-democracia, que historicamente nasceu do imperativo da igualdade, mas também do compromisso entre o capital e o trabalho, foi-se acomodando às desigualdades, baloiçando entre, por um lado, a denúncia do seu carácter intolerável e, por outro, uma inédita passividade em relação às suas formas concretas. (Facto que, de resto, toca no coração da atual cultura democrática, no ponto de convergência das patologias do individualismo e do financismo) .
 
É por isso tempo de lembrar uma esquecida evidência: não se muda a sociedade sem uma filosofia social e política que prepare, estimule e enquadre essa mudança. É aqui que o socialismo democrático tem falhado. Foi isto que ele esqueceu ao deixar-se enfeitiçar pelo magma ideológico das últimas décadas, sem compreender a tempo o significado e as consequências políticas de factos tão extraordinários como a queda do Muro de Berlim e o fim do comunismo, a globalização e a emergência de novas formas de concorrência, a fragilização estrutural do Estado-Providência, o financismo e as armadilhas da generalização do crédito, o individualismo e os impasses do sentimento coletivo, o tecnologismo e a revolução do espaço e do tempo, etc., etc...
 
Perante tudo isto, o que se impunha ao socialismo democrático europeu era o trabalho, intelectual e político, de repensar a social-democracia e a matriz de compromisso entre o capital e o trabalho num mundo globalizado e tão transformado. Em vez disso, optou em geral por seguir uma estratégia de avestruz, metendo a cabeça na areia, oscilando entre a nostalgia do seu ultrapassado modelo clássico e a deriva de um socialismo que no essencial se acomoda ao status quo. Esta oscilação caracteriza bem o trajeto e as hesitações de François Hollande face aos problemas que enfrenta desde o começo do seu mandato: a Europa, o crescimento e o emprego, a despesa pública. A assinatura do "tratado orçamental" de Merkel, que em campanha ele tinha jurado que iria exigir que fosse negociado, foi um primeiro sinal inquietante, sobretudo porque em relação aos outros problemas não se vislumbrou nenhuma estratégia clara, capaz de os resolver.
 
Como Paul Krugman escreveu no New York Times, comentando a intervenção de Hollande - que intitulou "Scandal in France" -, é difícil compreender o recurso do Presidente francês às desacreditadas teorias do século XIX de Jean-Baptiste Say sobre a oferta e a procura, facto que parece traduzir uma derrota que se inscreve na dimensão mais profunda da política, que é - insisto - a das doutrinas e dos projetos, dos valores e das ideias.
 
É ainda aqui, todavia, que o desafio permanece. E que é agora o de saber em que é que o "socialismo da oferta", que François Hollande anunciou na conferência de imprensa no passado dia 14, se vai distinguir das políticas hoje dominantes na União Europeia. A prova anuncia-se difícil e as suas consequências projetar-se-ão muito para lá de França, por toda a União Europeia. Oxalá o Novo Rumo, que os socialistas portugueses preparam para 2015, tenha tudo isto em conta.
 

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