terça-feira, 26 de agosto de 2014

A FAIXA DO DESESPERO (1)



Rui Peralta, Luanda

I - Quando, em Julho, Israel iniciou o ataque a Gaza,  Washington entrou em frenesim, ao melhor estilo Gospel. A Casa Branca e o Capitólio mais pareciam enormes templos onde os fiéis entram em transe, enquanto o Pastor grita, geme e contorce-se ao som de um coro de espasmos, na mais absoluta epifania. Obama reiterou a sua "forte condenação" aos rockets lançados contra os colonatos e aos ataques contra o exército sionista através da rede de tuneis pelo Hamas. Expressou, ainda, uma "crescente preocupação" com o numero de civis Palestinianos mortos em Gaza, embora sem condenar ou culpabilizar o exército israelita, o que foi aproveitado pelo Senado, que aprovou por unanimidade o apoio às acções israelitas em Gaza, enquanto condenava "as provocações" do Hamas e apelava ao Presidente da Autoridade Palestiniana  Mahmoud  Abbas para dissolver o governo de unidade com o Hamas e que condenasse os ataques a solo israelita.

Para Washington é normal que na Cisjordânia, os israelitas avancem com a construção ilegal de colonatos e respectivas infraestruturas, para que possam ser, depois de valorizadas, integradas em Israel, enquanto os Palestinianos são acantonados e sujeitos a uma intensa repressão e violência. É também normal, para Washington, que nos últimos 14 meses as forças de segurança de Israel tenham assassinado mais de duas crianças Palestinianas por semana. A violência sionista subiu de tom depois do  assassinato brutal de três adolescentes israelitas de um dos colonatos israelitas nos territórios ocupados. Um mês antes, dois adolescentes  Palestinianos foram baleados mortalmente na cidade de Ramallah.

Olho por olho, dente por dente, é uma norma que Washington considera legitima para Israel, pois não é este o único Estado de Direito na região? (claro que para os Palestinianos esta norma não pode ser aplicada, pois Washington atira-lhes logo com os Direitos Humanos á cara e quanto aos Estados árabes da região mesmo que sejam Estados de Direito, para Washington não interessa, porque é Direito Islâmico).

II - A intenção de separar Gaza da Cisjordânia é vigorosamente tentada desde a assinatura dos acordos de Oslo. Por estes acordos as duas regiões são partes inseparáveis. Um olhar rápido ao mapa explica porquê: Gaza é o único contacto territorial da Palestina com o mundo exterior. Se a unidade territorial for quebrada a Palestina fica fechada na Cisjordânia aprisionada entre dois Estados hostis (Israel e Jordânia). Em Gaza, os Palestinianos foram afastados das áreas de fronteira com Israel, o que inclui cerca de um terço das terras aráveis. Os israelitas alegam razões de segurança, mas a realidade é outra. A História oficial descreve um conto que é assim: depois de Israel ter, graciosamente, entregue Gaza aos Palestinianos, esperaram que estes construíssem um Estado próspero e que a Paz reinasse na região. Mas os Palestinianos revelaram a sua verdadeira natureza, atacando Israel com rockets. Só que este é um conto que está bem distante da realidade e cuja moral da história é suspeita. Israel dedica a sua atenção á destruição da Palestina e empenha-se nesse objectivo.

Em Janeiro de 2006 os Palestinianos cometeram um "crime": elegeram, em eleições livres e internacionalmente supervisionadas, o Hamas para a administração de Gaza. Óbvio que diversos factores pesaram nesta decisão dos palestinianos de Gaza (talvez não se deva dizer que foi uma vitória eleitoral do Hamas, mas antes uma derrota eleitoral da OLP), mas um facto é que o Hamas mostrou-se, quase sempre, dentro dos âmbitos definidos pela soberania popular. USA, U.E. e Israel é que nunca aceitaram esta decisão dos habitantes de Gaza e no caso de Israel, a derrota da OLP, serviu para agitar o fantasma fundamentalista islâmico e terrorista e alegar razões de segurança para lançar uma forte ofensiva politica, diplomática e militar. Foram impostas sanções, que mais não eram que o primeiro passo da ofensiva militar, iniciada pela guerra económica.

Em 2013 o Hamas e o Fatah (maioritário na Cisjordânia) estabelecem um acordo que reforça a unidade palestiniana e leva á formação de um novo governo, sem participação do Hamas e aceitando todas as propostas do Quarteto (USA, U.E., Rússia e Israel). Esta vitória diplomática palestiniana afastava-se dos planos de Israel. O acordo de unidade palestiniana foi um golpe bem assente, que obrigou Israel a alterar a sua estratégia negocial. Os israelitas já não estavam perante uma Palestina dividida, uma Cisjordânia isolada e uma Gaza afogada. Algo tinha que ser feito e o assassinato dos três jovens israelitas na Cisjordânia aconteceu no momento exacto.

O governo de Netanyahu aproveitou a situação e acusou o Hamas de estar por detrás dos assassinatos. O facto de estes terem ocorrido na Cisjordânia serviu para que o governo israelita lançasse as suspeitas que o Hamas agia clandestinamente, com o objectivo de destruir a Autoridade Palestiniana e retirar a maioria á Al-Fatah, tomando o poder na Cisjordânia. Desta forma, os sionistas tentavam criar divisões na unidade palestiniana, fazendo-a regressar á situação anterior (embora a base deste argumento não seja apenas uma mera invenção dos israelitas.

Um olhar atento às relações entre as elites palestinianas e às dinâmicas internas palestinianas, não exclui essa pretensão do Hamas). Um dos especialistas israelitas em assuntos do Hamas,  Shlomi Eldar, considera que estes três jovens israelitas foram executados por um clã dissidente do Hamas baseado em Hebron. As autoridades israelitas ignoraram, no entanto, os pareceres dos seus especialistas e procederam a detenções massivas, prendendo 419 palestinianos, dos quais 335  eram militantes do Hamas. Foram, ainda, mortos, pelas forças israelitas, 6 palestinianos durante as operações de detenção, para além dos israelitas  confiscarem  350 mil US dólares. A 7 de Julho Israel efectuou dezenas de ataques a Gaza,  matando cinco militantes do Hamas. O Hamas reagiu,  depois destes ataques, lançando os primeiros rockets em 19 meses. A 8 de Julho os israelitas iniciaram a operação Margem Preventiva.

Em finais de Julho cerca de 1500  Palestinianos estavam mortos, numero que ultrapassou as estatísticas dos bombardeamentos israelitas de 2008-9. 70% destas baixas são civis, incluindo um número ainda indeterminado de mulheres, idosos e crianças. Estes dados de finais de Julho contrastam com as baixas civis israelitas, vitimas dos rockets do Hamas: três.  Vastas áreas de Gaza foram completamente destruídas. Durante as pausas dos bombardeamentos da artilharia e força aérea israelitas, os civis de Gaza contam os mortos e tratam dos feridos, para além de fazerem contas aos bens perdidos, no meio das ruinas. A central de energia foi atacada, limitando ainda mais a deficiente distribuição de electricidade, com todas as implicações que advêm da falta de rede eléctrica (alimentos, água, hospitais, etc.. As equipas de salvamento são repetidamente atacadas e grande parte das ambulâncias encontram-se danificadas, devido aos ataques israelitas. Quatro hospitais foram atacados pela artilharia israelita. O primeiro foi Al-Wafa, na cidade de Gaza, um Hospital de Reabilitação, atacado no dia em que as forças terrestres israelitas invadem a prisão de Gaza. Grande parte dos 17 pacientes  e dos 25 médicos e enfermeiras são evacuados antes do edifício ser destruído.

Também uma escola da ONU foi atacada, deixando 3300 refugiados sem aulas. A ultrajada UNWRA reagiu, assim como o secretário-geral da ONU, mas o vento levou as palavras. O vento e a Casa Branca, através de uma das suas porta-vozes, Bernadette Meehan, que varreu as palavras da ONU para debaixo do tapete da sala oval, desta forma: “We are extremely concerned that thousands of internally displaced  Palestinians who have been called on by the Israeli military to evacuate  their homes are not safe in UN designated shelters in Gaza. We also  condemn those responsible for hiding weapons in United Nations  facilities in Gaza”. Foi, assim, omitido qualquer menção ao ataque e á destruição da escola, ao mesmo tempo que a ONU foi acusada de albergar armamento do Hamas.  Mais tarde a administração norte-americana condenaria a destruição das infra-estruturas escolares da ONU fornecendo mais armas a Israel, conforme se conclui pelas palavras do porta-voz do Pentágono, Steve Warren: “And it’s become clear that the  Israelis need to do more to live up to their very high standards (…) for  protecting civilian life”.

São, sem dúvida, altos os standards da hipocrisia da Casa Branca e dos falcões do Pentágono...

III - Ataques a estruturas e infraestruturas da  ONU, como escolas, abrigos, centros de apoio a populações, campos de refugiados e mesmo a aquartelamentos das forças de paz,  é um hábito e uma especialidade sionista. Actualmente já existem muitos Estados que não deixam cair no atroz silêncio da diplomacia hipócrita, estes atentados contra a comunidade e o Direito internacionais. Bolívia e Venezuela deram um exemplo ao retirarem os seus embaixadores em Israel. Este exemplo foi seguido por mais cinco Estados (todos Latino-Americanos): Brasil,  Chile, Equador, El Salvador e Peru.

 Diferente é a reação dos USA e da U.E., obcecados pela condenação do Hamas. Os europeus padecem de um sentimento de culpa em relação aos judeus. As perseguições a que as comunidades judaicas foram submetidas durante séculos, as atrocidades que sofreram na Europa, os pogroms, os campos de extermínio, o Holocausto, levam a U.E. a tomar uma atitude de simpatia por Israel, mais numa atitude de expiação. Quanto aos USA é importante lembrar que na sua mitologia identitária são um Povo Eleito, uma Nação abençoada por Deus e que com Ele mantem uma atitude de confiança.

Claro que para além destes factores (expiação tolstoiana da U.E. e mitologia norte-americana) existe o factor principal: o negócio. Este factor encontra-se muito além das tragédias humanas causadas pela guerra. Torna-se indiferente ao numero de mortos, de feridos, de vitimas, de questões como o facto de não haver água potável em Gaza desde 31 de Julho porque a Coastal Water Utility, o distribuidor de água potável para a Faixa de Gaza anunciou que não está em condições de abastecer água e prover outros serviços sanitários devido à falta de combustível e aos frequentes ataques às suas instalações. É indiferente aos falcões das negociatas que Gaza esteja sem serviços primários de saúde, ou que esteja em situação de catástrofe humanitária.

Tudo isso são riscos secundários, factores de somenos importância. Quando este pesadelo terminas os habitantes de Gaza serão "livres" para retornar às ruinas das suas casas, á normalidade das detenções e das atrocidades israelitas enquanto na Cisjordânia, os seus habitantes retornarão á normalidade de assistirem á construção de colonatos nas suas antigas terras. Tudo isto enquanto o negócio perdura e os USA mantêm o seu decisivo, virtual e unilateral apoio aos crimes israelitas e impedem que o Direito Internacional seja aplicado.

Passaram-se quatro décadas desde que Israel tomou a decisão de  expandir-se, rejeitando uma proposta de paz  oferecida pelo Egipto em troca da evacuação dos territórios do Sinai, onde  Israel iniciara a construção de colonatos. Washington interveio e o acordo foi assinado. Esta é uma constante nas relações Washington / Telavive. Israel estica a corda e os USA observam a corda a ser esticada. Quando a corda parece querer desfiar-se, os USA intervêm e com a ajuda da U.E.

Seria desejável uma mudança na política norte-americana para a Palestina, mas é ingenuidade acreditar que isso possa acontecer, ou que a opinião pública possa ser ouvida nesta questão, que encontra-se escudada á opinião pública por razões de segurança (duplamente escudada pelo segredo de Estado e pelo segredo do negócio ao nível da industria da segurança e da industria militar). Por essa razão a Amnistia Internacional tem em curso uma acção contra os crimes israelitas em Gaza e apela a um embargo de equipamento militar, armas e munições a Israel (e ao Hamas), processo conduzido no Senado norte-americano pelo senador Patrick Leahy,  autor da proposta de lei.

Este é um bom exemplo, de potencial  aplicabilidade a Israel em casos específicos e que a ser bem conduzido, representará uma porta aberta para futuras e mais efectivas propostas de acção no sentido de inverter a actual orientação, punindo Israel pelo seu comportamento criminoso  e forçando Washington a tornar-se parte da comunidade internacional (abandonando a sua postura imperial e a sua politica imperialista) e a respeitar o Direito Internacional.

Eis algo que as vítimas palestinianas, após décadas de repressão e de violência, agradecerão.

(continua)

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