TERESA DE SOUSA - Público
A
Europa joga o seu futuro na forma como agir na Ucrânia e no Médio Oriente.
Deixou de poder ignorar o mundo. Mas ainda não sabe como pode lidar com ele. A
Alemanha, pelo menos, já mudou.
Angela
Merkel não costuma brincar em serviço. Concorde-se ou não com ela, provou-o na
forma como geriu a crise do euro. Também não quis deixar dúvidas sobre a
viragem súbita da política alemã em relação a Vladimir Putin. É verdade que foi
preciso um avião com 300 pessoas a bordo, na sua maioria europeus, para fazê-la
acelerar a mudança. Também aprendemos que gosta de agir no último minuto e com
o menor custo possível. Desta vez, corrigiu a rota tão rapidamente que a
imprensa ocidental ainda levou alguns dias a mudar, ela própria, de registo.
Desde
o início da crise, a chanceler tinha decidido coordenar a resposta ao desafio
bélico de Vladimir Putin com o Presidente Obama e foi o que fez, mesmo que
alguns passos atrás. Manteve um contacto permanente com o Presidente russo.
“Ele vive noutro mundo” disse a Obama pouco antes da anexação da Crimeia.
Sempre disse que a Rússia teria de pagar um preço. Finalmente, a 29 de Julho, a
decisão de passar ao “nível três” das sanções, aquele que verdadeiramente dói à
economia da Rússia, foi o primeiro sinal claro dessa mudança.
A
chanceler percebeu que era a segurança europeia que estava posta em causa e que
a geoeconomia que inspirou a sua política externa (muitas vezes com a fúria dos
seus principais parceiros europeus) e que determinou a relação da Alemanha com
a Rússia, deu lugar à geopolítica.
A
Alemanha é o terceiro maior parceiro comercial da Rússia (a seguir à China e à
Holanda) e um dos maiores investidores. Berlim sempre entendeu que as relações
com Moscovo eram para tratar ao nível bilateral e não ao nível europeu. Merkel
limitou-se a corrigir os excessos do anterior chanceler social-democrata
Gerhard Schroeder, o grande amigo de Putin. Percebeu que não podia
relacionar-se com Moscovo ignorando pura e simplesmente a Polónia e deu-lhe um
lugar a bordo. O chefe da diplomacia polaca, Radeck Sikorski agradeceu a
diferença. Elogiou a chanceler com uma frase estranha na boca de um polaco:
“Tenho mais receio da falta de liderança alemã do que da sua liderança”. A
Polónia e a maioria dos países de Leste que são hoje membros da União e da NATO
sempre avisaram que Putin não era de fiar. Foram muitas vezes ignorados. Os
líderes dos restantes países europeus encontraram no “unilateralismo” alemão na
sua relação com a Rússia a desculpa ideal para prosseguirem com os seus
negócios.
A
crise na Ucrânia, que a Europa não conseguiu antecipar, pôs em causa este estado
de coisas. O papel da Alemanha seria sempre crucial.
“Não
estás a entender, George”
“Tu não estás a entender, George, a Ucrânia nem sequer é um Estado, parte do seu território pertence à Europa de Leste mas a parte maior foi uma oferta que lhe fizemos”. A frase é de Vladimir Putin. Foi dita no dia 24 de Abril de 2008, depois da última cimeira da NATO
Nicolas
Sarkozy partiu para Moscovo e para Tbilissi forçando um acordo que tinha duas
versões diferentes, conforme a capital onde foi negociado. A Europa enterrou o
problema e seguiu em
frente. Alguns meses depois da ocupação, Varsóvia propôs a
Berlim uma nova parceria de vizinhança virada para Leste, incluindo os países
de fronteira entre a Rússia e a Europa. Frank-Walter Steinmeier, então e hoje o
chefe da diplomacia alemã dos governos de coligação, rejeitou a proposta. O
ministro estava a negociar na mesma altura uma “Parceria para a Modernização”
com a Rússia. Sikorski uniu-se à Suécia onde o seu homólogo Carl Bildt percebia
o que estava em causa.
Hoje , a parceria já uma política europeia. Seguiram-se os
acordos de associação que Bruxelas tratou de negociar, incluindo com a Ucrânia.
Percebeu que qualquer coisa se passava quando, na véspera da cimeira em que o
acordo devia ser assinado (Novembro de 2013), Kiev não compareceu. O que
ninguém previu foi que os jovens que queriam ligar o destino do seu país à
Europa, fossem para a rua defender a sua causa. Em seis meses, tudo mudou.
Angela
Merkel resolveu garantir essa mudança com actos que nunca imaginaríamos como
possíveis. Na semana passada foi a Riga dizer aos letões: “Quero insistir em
que o Artigo 5.º da NATO – o dever de garantir apoio mútuo – não é uma coisa que
apenas exista no papel, tem de ter uma tradução concreta”. Anunciou que jactos
alemães vão participar numa missão da NATO de policiamento aéreo das fronteiras
e que a Aliança está a acelerar a constituição de uma força de reacção rápida,
“se a Rússia tentar desestabilizar a vizinhança dos Bálticos como fez na
Ucrânia”. A Letónia e a Estónia, membros da União e da NATO, têm vastas
minorias russas. Qualquer sinal de fraqueza em Kiev iria colocá-los na linha de
mira de Putin.
No
sábado, a chanceler foi a Kiev mostrar de que lado está, mesmo que também para
encontrar com o Presidente ucraniano uma solução política que salva a face ao
Presidente russo. Escreve Quentin Peel, o correspondente doFinancial
Times em Berlim: “Putin esperava que a Alemanha resistisse a qualquer
medida que afectasse as suas exportações”. Enganou-se. “Cometeu um enorme erro
de cálculo sobre a chanceler”. A crise na Ucrânia apenas acelerou uma revisão
da política externa que já vinha de trás. Ulrick Speck escreve
no site do Carnegie Europe: “Putin está a aprender que não colhe
grande simpatia no seu estrangeiro próximo e, ao contrário do que ele pensava,
quando confrontada com um desafio vital, a UE pode ser um opositor muito duro”.
Os europeus perceberam, depois da anexação da Crimeia, que Putin “tornou claro
que rejeita totalmente a ordem pós-Guerra Fria na Europa”, diz Stefan Meister
do European Council on Foreign Relations.
A
NATO não escondeu os perigos que a situação envolve, reafirmando por palavras e
alguns actos que o artigo 5.º é para cumprir. A 17 de Agosto, uma opinião
assinada pelo secretário-geral da NATO Anders Fogh Rasmussen e pelo
comandante supremo aliado, Philip Breedlove, notava que, “pela primeira
vez desde o fim da II Guerra um país europeu anexou parte de outro pela força”.
“A nossa missão é garantir que a NATO quer defender todos os aliados contra
qualquer ameaça”. Americanos, franceses, ingleses deslocaram para os Bálticos e
para a Polónia aviões e soldados. Cada vez mais, mesmo que a contragosto, a
Europa começa a perceber que o seu mundo “pós-moderno” e a sua visão normativa
das relações internacionais, à imagem e semelhança da sua própria integração,
já saiu de moda e que a espera lá fora um mundo cada vez mais vestefaliano,
onde imperam as relações de poder. Não ligou grande coisa ao mundo mas o mundo,
como se esperava, entrou-lhe pela casa dentro, sem se fazer convidado.
Estamos,
porventura, perante um ponto de viragem que é o fim de um longo caminho que os
europeus prosseguiram nos últimos 25 anos para tentarem adaptar-se ao mundo
pós-Guerra Fria. Com o Tratado de Maastrich, em Dezembro de 1991, ficou
garantido o compromisso da Alemanha unificada com a integração europeia
(através do euro). Em 1992, durante a primeira presidência portuguesa, a Europa
considerou que podia gerir os riscos de desagregação violenta da Jugoslávia,
sem ter de recorrer aos EUA. A ilusão durou três anos e duas centenas de
milhares de mortos. Sucederam-se os enviados especiais e os capacetes azuis.
Os
fantasmas do passado regressaram quando Bona reconheceu a independência da
Croácia sem sequer informar os seus parceiros, enquanto Mitterrand se mantinha
fiel à Sérvia. Em 1995, apenas restou à Europa ir à Casa Branca com uma corda
ao pescoço pedir ajuda a Bill Clinton para forçar uma negociação e garantir uma
força militar suficientemente grande para fazer cumprir os seus resultados. No
Kosovo a história repetiu-se. Tony Blair apresentou a sua doutrina da
intervenção humanitária. A ONU integrou-a sob a forma do novo princípio da
“responsabilidade de proteger”. Cansados da humilhação que sofreram nos Balcãs,
com a sua incapacidade política e militar, Tony Blair e Jaques Chirac
reuniram-se em St. Malo
em 1999 para lançar as bases de uma defesa europeia. Depois veio o 11 de
Setembro, o Afeganistão e o Iraque, que quebrou a meio a NATO e a União
Europeia. Foi preciso a chegada de Nicolas Sarkozy ao Eliseu para que a França
abandonasse a ideia de uma defesa europeia fora da NATO, que Londres recusava
aceitar. O anterior Presidente integrou a França de novo na estrutura militar
da Aliança (De Gaulle retirara-a de lá em 1966) e aproximou-se dos Estados
Unidos, abrindo as portas a um novo entendimento com Londres. François Hollande
não pôs essa reorientação em
causa. Faltava a Alemanha definir o seu lugar.
A
decepção do Tratado de Lisboa
Há precisamente cinco anos a União dedicava-se pela primeira vez à escolha dos novos cargos que o Tratado de Lisboa criava para garantir um perfil mais forte da Europa na cena internacional: o presidente do Conselho Europeu e o Alto representante para a política externa e de segurança. Os líderes europeus, a começar pela chanceler, ainda olhavam de cima para a crise financeira como um problema americano. Os sinais de bancarrota eminente na Grécia já eram visíveis mas Merkel acreditava piamente na célebre cláusula do “no bail-out”.
O
Tratado de Lisboa dava muito maior importância à política externa e de
segurança europeia. Criava uma nova estrutura diplomática (o Serviço Europeu de
Acção Externa) chefiada por um Alto representante que presidiria também ao
Conselho dos Negócios Estrangeiros e ocuparia uma das vice-presidências da
Comissão. Não foi preciso muito tempo para perceber que os grandes países não
tencionavam abdicar um milímetro do controlo da política externa e, ainda mais,
das decisões militares. A nova chefe da Diplomacia europeia era uma ilustre
desconhecida britânica sem qualquer experiência diplomática. Catherine Ashton
compreendeu que pouco mais se esperava dela a não ser montar o Serviço Europeu
de Acção Externa e produzir declarações suficientemente vazias para não
incomodar ninguém. Só na parte final do seu mandato conseguiu apresentar
trabalho. A discreta negociação entre o Kosovo e a Sérvia, que levou a bom fim,
provou até que ponto a perspectiva de aderir à União ainda é suficientemente
forte para enterrar os ódios nacionalistas do passado. Hillary Clinton
estabeleceu uma boa relação com ela. Mas ninguém pode dizer que a Europa tenha
hoje uma política externa e de segurança mais forte e mais coerente. Tem as
estruturas institucionais e militares. Não tem a vontade política.
Nem
tudo correu mal desde Maastricht. A Europa conseguiu levar a cabo a sua missão
estratégica mais importante a seguir ao euro: unificar o continente europeu
através da democracia e dos mercados. Na primeira década do novo século ainda
se escreveram longos ensaios sobre a eficácia do seu poder de atracção, que se
estendia para além das fronteiras europeias e que se revelava uma arma muito
mais poderosa de “regime change” do que as guerras de Bush. As potências
emergentes ainda não tinham emergido e o modelo europeu chegou a ser tentado em
várias latitudes. A crise do euro gastou-lhe energias e uma boa parte do
seu soft-power. Ninguém compreendeu, em Brasília, em Nova Deli ou Pequim,
como é que o bloco económico maior e mais rico do mundo não conseguia vencer
uma crise que começou por atingir um país que representava 2% da sua riqueza,
ao ponto de ir mendigar apoio ao FMI e ao G20. Não ignorou apenas o seu flanco
Leste. Ignorou a Turquia, deixando Erdogan à vontade para a sua deriva em
direcção ao autoritarismo.
Quem
vão escolher os líderes europeus no próximo dia 30 de Agosto para substituir
Lady Ashton? Já ninguém acredita em milagres. Mas Putin
fez à Europa um grande favor de mostrar ao obrigá-la a encarar o mundo tal como
ele é. A Síria e o Iraque mostraram-lhe até que ponto um Médio Oriente
mergulhado em violência é, como disse Laurent Fabius, um problema de segurança
europeia. As imagens da decapitação de um jornalista americano fizeram-na
acordar para uma realidade demencial da qual não pode fugir. A França teve de
ir quase sozinha ao Mali para impedir a tomada do poder por um grupo jiahdista
radical. Merkel ainda não estava disponível para “pagar as guerras dos outros”.
Antes disso, quando o Conselho de Segurança decidiu sobre a operação na Líbia,
resolveu abster-se ao lado da China, da Rússia e do Brasil. Desde aí tentou
corrigir o tiro.
Até
às imagens insuportáveis do jornalista americano degolado por alguém de forte
acento britânico, europeus e americanos queriam ver o Iraque como um problema
humanitário. Na sexta-feira, François Hollande disse o mesmo que o secretário
da Defesa americano Chuck Hagel: “Creio que a situação internacional é a pior
que vimos desde o 11 de Setembro”. Diz o editor europeu da BBC, Gavin Hewitt,
que o Presidente francês foi ao cerne da questão: “Já não podemos manter o
debate tradicional sobre intervenção ou não intervenção.” David Cameron não
resistiu à tentação de recorrer ao tom churchiliano a que nenhum primeiro-ministro
britânico resiste para proclamar o combate a esta nova era do terror. A
imprensa diz que foi apenas o tom. O primeiro-ministro conservador tem sido um
desastre em matéria de política externa, levando o seu país para uma
marginalidade europeia e transatlântica, incluindo militar, onde nunca esteve.
Desta vez, a própria Alemanha não precisou de tempo para se juntar à decisão
francesa de envio de armamento para os curdos iraquianos. Paris quer uma
conferência para uma estratégia internacional em Setembro.
Para além da importância
crescente da relação transatlântica, o futuro da Europa num mundo que lhe é
cada vez mais hostil vai depender da forma como resolver a crise ucraniana e
enfrentar a nova ameaça da barbárie jihadista. Vivem na Europa mais de 20
milhões de muçulmanos. Não é uma coisa que possa ficar lá fora. O problema é
que a segurança tem um custo que os europeus podem não estar dispostos a pagar,
habituados que estão a não ter de escolher entre a manteiga e a espingarda,
graças à garantia americana. Na próxima cimeira da NATO, no início de Setembro,
os EUA vão insistir novamente em que a Europa não pode continuar a reduzir os
seus orçamentos de defesa. No clima de austeridade criado pela crise, vai ser
muito difícil aos governos explicarem isso aos seus eleitores. Mas alguma coisa
vai ter de mudar na economia e na política externa, se a Europa não quer
mergulhar na instabilidade e na irrelevância.
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