quarta-feira, 26 de março de 2014

LA CRIMEIA



Rui Peralta, Luanda

I - No actual governo ucraniano o movimento SVOBODA, de extrema-direita, conseguiu um vice-primeiro-ministro e três ministros. O SVOBODA no entanto não é a única força politica da extrema-direita ucraniana, espaço que compartilha com o Pravy Sektor (Sector das Direitas), organização a que pertencia, Alexandre Muzishkovo, morto esta semana pela policia ucraniana, uma figura grotesca, assumidamente fascista, que vangloriava-se de ter morto “uma dúzia” de soldados russos na Chechénia, conhecido por esbofetear funcionários judiciais e que uma vez presidiu a uma reunião da camara parlamentar regional de Rovno transportando uma kalashnikov, que colocou sobre a mesa.

O Pravy Sektor é um partido recente, formado um mês antes do início dos protestos em Kiev. Agrupa vários grupos neonazis e ultranacionalistas, que consideraram o SVOBODA demasiado moderado e está na linha política de Stefan Bandera, um ucraniano nascido em 1909 e que morreu com 50 anos de idade, líder da UPA, uma organização que lutou contra os soviéticos e que colaborou com os SS nazis em 1941. O UPA acabou a lutar contra todos: contra os soviéticos, contra os alemães (Bandera acusou os nazis de não respeitarem os compromissos assumidos) e contra os polacos do AK (Armia Krajowa). Terminada a II Guerra, o UPA foi recuperado pela CIA, que financiou a organização até 1959, ano em que Bandera foi assassinado pelo KGB em Munique. Sem a liderança carismática de Bandera o UPA desintegrou-se. Bandera tem hoje dois monumentos na Ucrânia Ocidental, onde o seu nome e memória gozam de alguma popularidade, mas é considerado, no resto do país, uma persona non grata, fascista, colaborador da SS e designam-no por “banderovski”.  

O SVOBODA e o Sector das Direitas foram as forças de choque paramilitares nos protestos desestabilizadores em Kiev, sendo decisivos nos choques com a Policia (onde contam com muitos adeptos) e no derrube do anterior governo ucraniano. Financiamentos e canais de serviços secretos da NATO actuaram em Kiev, como já o haviam feito na “Revolução Laranja”, o que foi muito bem aproveitado pelos grupos fascistas ucranianos.

O governo insipido nascido desta turbulência, formado por diversas e pitorescas figuras “moderadas” da direita ucraniana pró Ocidental, nomeou figuras rocambolescas como Dmitri Yarosh, 42 anos de idade, líder do Sector das Direitas, nomeado vice-secretário do Conselho da Segurança Nacional, órgão que supervisiona os serviços de inteligência ucranianos, policia e exército. Yarosh recusou a nomeação, apesar do responsável pelo Conselho da Segurança Nacional ser Andri Paribu, o “Comandante da Autodefesa do Maidán”, o coordenador do dispositivo paramilitar da acção de desestabilização que levou á queda do anterior governo.

Paribu foi fundador do Partido Socialista-Nacionalista da Ucrânia (SNPU), organização neonazi, com contactos internacionais na extrema-direita europeia. Em 2004 o SNPU transformou-se no movimento SVOBODA (Liberdade). Em 2012 Paribu ingressou no “Batkisvshina” o partido de Júlia Timochenco, a ex-primeira-ministra julgada e condenada por corrupção, a cumprir pena de prisão, mas antes dessa adesão, Paribu afastou-se do SVOBODA, em 2005 e formou um novo partido ultranacionalista (Partido Nacionalista Radical), em 2006. 
       
Em 2010 (cinco anos depois do afastamento de Parubi e quatro anos depois da facção do ex-SNPU reorganizar-se no Partido Nacionalista Radical) o líder do SVOBODA, Oleg Tiagnibok, qualificou de herói um dos encarregados do campo de extermínio nazi de Sobibor, o ucraniano Ivan Demianiuk. Nesse mesmo discurso Tiagnibok considerou que o governo ucraniano era composto pela “mafia russo-judaica” e apelava á abolição do parlamentarismo, realçando que o programa do SVOBODA previa a proibição dos partidos políticos (“que apenas serviam para dividir os ucranianos e prolongar o domínio russo-judaico”), a nacionalização da indústria e dos meios de comunicação social, a “limpeza” da administração pública, do exército e no sector da Educação e a “liquidação” dos intelectuais “russos e judeus”, assim como a “reeducação e nacionalização dos ucranianos de língua russa”.

Estas tomadas públicas de posição do líder do SVOBODA não impediram que ministros europeus que “solidarizaram-se” com a “revolta em Kiev” apertassem a mão a Tiagnibok (registando o acto em fotografia, para a posterioridade, talvez para mostrarem aos netos) e que este fosse recebido, em diversas ocasiões, pelo embaixador alemão em Kiev. “Esqueceram-se” os ministros e os representantes diplomáticos da U.E. e dos USA que em 2013 o Congresso Mundial Judaico pediu a ilegalização do SVOBODA, considerando-o “um factor de desestabilização da Ucrânia com o objectivo de eliminar fisicamente a comunidade judaica aí residente”). De nada serviram as indicações dos sionistas! Hoje o SVOBODA conta com três ministros no governo (ambiente, agricultura e educação) para além do vice-primeiro-ministro, do procurador-geral e de seis governadores provinciais.
  
Pela primeira vez desde 1945, a extrema-direita ultranacionalista, fascista e antissemita controla parcela de poder…e num governo abençoado pela “Santa Trindade”: U.E., USA e NATO.          

II - Alguns dias depois do referendo que optou pela secessão da Crimeia e sua integração na Federação da Rússia, Obama e o primeiro-ministro ucraniano, Arseny Yatsenyuk encontraram-se na Casa Branca. USA e U.E. rejeitaram o referendo da Crimeia, considerando-o uma violação á Constituição da Ucrânia e o primeiro-ministro ucraniano afirmou, num comício em Kiev, que a “Ucrânia não cederá nem um centímetro de terra ao Kremlin”. Por sua vez Putin defendeu a decisão popular na Crimeia e considerou que o referendo é legítimo e uma garantia dos interesses da população da Crimeia.

Os laços entre a Crimeia e a Rússia são históricos. No século XVIII a Crimeia foi anexada pelo Império Russo e a czarina Catarina, a Grande, fundou a cidade de Sebastopol com o intuito desta ser a base da frota russa no Mar Negro. É nesta cidade que existe a maior densidade de população de língua russa e a História Militar testemunha a influência russa na Crimeia e reforça os laços identitários. Em 1954 a península da Crimeia foi integrada na Republica Socialista Soviética da Ucrânia, durante a administração de Nikita Krutshev, que nascera na Ucrânia. Desde essa data a comunidade ucraniana na Crimeia ascendeu a cerca de 15% da população. Mas existe uma terceira comunidade, que reside desde á muito na península: os Tártaros. Esta comunidade, de origem turca, foi movida deste território durante a II Guerra Mundial, antes da ocupação nazi, mas muitos foram os tártaros, que para aqui retornaram após o final do conflito. 

Neste panorama, é claro que o resultado do referendo era esperado, daí as atribuladas, confusas e vigárias objecções da U.E e dos USA ao referendo, aludindo a um pretenso direito internacional e tentando por todos os meios impedir o reconhecimento do referendo, retirando-lhe legitimidade. Mas um facto é que esta é uma decisão soberana, legítima, porque provém da soberania popular.

O referendo foi composto por duas questões: 1- “Concorda que a Crimeia adira á Federação Russa?” 2- “Concorda com a Constituição da Crimeia, de 1992?” A Constituição de 1992, abandonada durante as negociações com Kiev, descreve a Crimeia como um Estado Independente e deixa em aberto a adesão á Federação Russa, desde que decidida soberanamente e depois da proclamação da Crimeia como nação soberana. Pela Constituição de 1992 (que foi aprovada pelo actual referendo) só existem dois caminhos, não antagónicos, mas complementares: a proclamação da independência e apos esta a eventual (ou não) adesão á Federação Russa (a opção de permanência da independência implicaria que a Crimeia fosse um Estado similar á da Abkhazia, ou aos Ossetas do Sul, países independentes, mas na prática dependentes do apoio e do suporte russo e reconhecidos apenas pela Federação Russa e por um pequeno numero de nações).

A maioria russa no território é favorável á integração da Crimeia na Federação (o que não quer dizer que haja russos da Crimeia que considerem a sua identidade ucraniana, partindo do seguinte principio: “A Crimeia é um pequeno território que faz parte da Ucrânia, um grande território. Se aderirmos á Federação Russa, seremos um pequeno território inserido num território ainda maior do que a Ucrânia”. De facto muitos russos da Crimeia apenas criticam a Kiev o não reconhecimento da autonomia do território, ao qual acrescentam-se os receios provocados pelos actuais acontecimentos). Os tártaros da Crimeia, que representam cerca de 25% da população do território, são a comunidade mais preocupada com a adesão da península á Federação Russa (receiam que os russos os forcem a uma nova deslocação forçada, como aconteceu na União Soviética, durante a época de Estaline). Organizaram os seus grupos de autodefesa e o Parlamento Autónomo Tártaro apelou ao boicote do referendo.  

Este discurso do receio étnico é transversal a toda esta região. Os russos da Crimeia temem o governo instalado em Kiev, devido ao facto de este estar sustentado pela direita e pela extrema-direita ucraniana e temem o discurso nacionalista ucraniano, mesmo quando este apela aos “valores do Ocidente”, com os quias esta comunidade não se identifica plenamente. A minoria ucraniana da Crimeia teme que os russos queiram ajustar contas com eles, devido ao que se passa em Kiev. Os tártaros suspeitam dos russos e temem pela sua autonomia e a minoria judaica encosta-se á maioria russa, temendo o nacionalismo ucraniano, que noutros tempos foi responsável pela sua eliminação e quase extinção no território.

Todo este episódio da Crimeia ressuscita o debate “autodeterminação versus integridade territorial” ou se preferirem a “contradição entre o direito da autonomia e o da soberania do Estado”. Podemos pegar em inúmeros exemplos, nas mais variadas e dispersas latitudes e longitudes (como o da Etiópia/Eritreia, Irlanda do Norte/UK, Escócia/UK, Pais Basco/Espanha, Quebeque/Canadá) mas vamos agarrar os protagonistas na questão da Crimeia. Comecemos pela Rússia. Na década de 90 a pressão da NATO fez-se sentir nas fronteiras da Rússia e em toda a Europa de Leste. Durante a questão do Kosovo e na agressão á ex-Jugoslávia a Rússia foi impotente para travar os avanços da NATO na região. A forma como a NATO redesenhou o mapa na ex-Jugoslávia, aproveitando as dinâmicas internas da Federação Jugoslava em desintegração, acelerando este processo e apoiando os direitos á autodeterminação das Republicas e regiões autónomas que a formavam.

Na época nenhum enviado diplomático europeu ou norte-americano pôs em causa os referendos e os direitos legítimos que estiveram por detrás das sucessivas separações e independências que alteraram por completo o mapa da região. Mas os comportamentos alteram-se em função dos interesses. A U.E. conhece o problema politico (as autonomias da Galiza, da Catalunha ou da Andaluzia, para a Espanha ou da Escócia para o UK) e militar (este ultimo no caso da Irlanda do Norte, para o UK e no caso do Pais Basco para a Espanha) criado pelo direito á autodeterminação e pelas lutas autonómicas e/ou separatistas e sabe que nem mesmo as tentativas federalistas ou de unidade dos mercados e subsequente integração politica, é suficiente para resolver o problema, pelo que a cautela quanto a este assunto deveria prevalecer e não embandeirar em arco atrás das propostas norte-americanas (a braços com o mesmo problema em Porto Rico).

Por sua vez a Rússia, depois de sofrer a pressão causada pelas diversas secessões (mantendo-se ainda alguns focos, como a Tchetchénia e outros de pequena dimensão) estabilizou o processo interno, através da Federação, ao mesmo tempo que reforçou-se para sacudir as pressões exercidas pela NATO nas suas fronteiras. Na questão da Crimeia os russos agiram de forma precisa, demonstrando um enorme calculismo, ao mesmo tempo que surgem como garantes da autodeterminação e da soberania popular da Crimeia (e por exemplo, da independência da Síria face á agressão estrangeira, ou como aliados estratégicos e de importância fundamental para a soberania nacional iraniana). E a Federação da Rússia ganha pontos, face á hipocrisia das instituições internacionais como a ONU e como a OSCE, fazendo-as passar por o que elas são na realidade: pontos (camuflados no caso da ONU) vitais de lançamento dos interesses do Ocidente.

A Federação da Rússia sabe (porque sentiu na pele) que o Ocidente é hipócrita, ultrapassa tudo e todos para manter os seus interesses, não consulta ninguém quando agride, ingere-se e invade outros países, não respeitando o mais elementar direito internacional, fazendo da legitimidade um embrulho de jornal e da legalidade uma nota de rodapé. A Crimeia representa uma lição que os democratas de pacotilha (de todas as pacotilhas, sejam á direita ou á esquerda, sejam defensores da democracia dos mercados ou da democracia social) devem aprender. Pelo menos para da próxima não desempenharem papéis grotescos e ridículos, reveladores de que quando a politica externa está entregue a merceeiros, feirantes e mentecaptos, os únicos negócios que podem ser conseguidos são os dos três vinténs (desastrosos, quando afinal os negociantes concluem que as meninas já não são virgens, sendo então muito tarde para usar o Ketchup).

III - Há um factor que foi esquecido no meio de todo o turbilhão criado pelo desenvolvimento deste processo: a crise económica e financeira. A Ucrânia estava á beira da bancarrota quando os protestos se iniciaram e a situação económica piorou. O país necessita de ajuda financeira e a situação poderá agravar-se ainda mais se a Rússia cortar o abastecimento de gás, ou simplesmente aumentar os preços do gás.

Este factor, o da crise económica e financeira, esteve por detrás da Revolução Laranja, em 2004 e vem, basicamente, desde a separação com a ex-URSS, com a agravante da crise politica em que desde então o país mergulhou. Em 2004 a Revolução Laranja implantou um sistema pró-Ocidental, de língua ucraniana, um governo etnicamente ucraniano que pretendia conduzir o país para a NATO, o que chocou com a comunidade russa que não viu com bons olhos a NATO nem gostou da imposição do ucraniano como língua oficial, ou de verificar que os ucranianos tinham acesso facilitado á administração central, enquanto aos russos da Ucrânia o acesso era praticamente vedado.

Quando a administração Obama propõe a suspensão da cimeira do G8 na Rússia (o que veio a acontecer, a decisão já foi anunciada) e John Kerry diz que os USA consideram excluir a Rússia do G8, estão a agravar a situação. De nada serve o discurso de que esta é a pior coisa que aconteceu na Europa desde a agressão á Jugoslávia, que o comportamento dos russos da Crimeia é perigoso (perigosos são os intuitos da extrema-direita ucraniana, xenófoba, racista e antissemita, que encontra-se alojada no novo e fragilizado governo ucraniano) que a Federação da Rússia está a violar a carta da ONU, os Acordos de Helsínquia, os tratados bilaterais entre a Rússia e a Ucrânia, o acordo de 1994 entre a Rússia, Ucrânia, USA e UK sobre as armas nucleares na Ucrânia, etc., etc., etc..Esse “choradinho” de pôr as velhinhas com a lágrima no canto do olho, ou os cânticos para “boi dormir” com que a propaganda ocidental tenta iludir o assunto, é parte do problema e em nada contribui para uma eventual solução.

O problema foi criado pela U.E, pelos USA, pelo Banco Mundial e FMI, quando a Ucrânia pediu ajuda financeira e ninguém ligou, aplicando pelo contrário o sermão das receitas “estruturantes”, das reformas “estruturais” e do discurso de dona de casa sobre cortes e contenção da despesa pública. Ninguém, nesse momento, respondeu afirmativamente á Ucrânia (provavelmente porque os governos ocidentais estavam aborrecidos pelo facto da Revolução Laranja ter sido um absoluto falhanço, porque a sua marionete preferida, Júlia Tymochenko, foi julgada e condenada por corrupção - caso que a maquina de propaganda da NATO transformou em “prisioneira politica” – e porque o ultimo presidente eleito da Ucrânia era de etnia russa) e ninguém no Ocidente, nesse momento em que a Ucrânia pediu ajuda, lembrou-se que a Rússia tem “interesses” ignorando que a Rússia tem “interesses” desde o século IX, quando assumiu a sua identidade politica.

Qual foi a ajuda norte-americana á Ucrânia? Foi o National Endowmwnt for Democracy, milhões de livros propagandísticos, 62 projectos, e o sermão “estrutural” e “estruturante” mas em versão simplificada (sempre foram muito pragmáticos, os USA). Quantos desempregados tem a Ucrânia? Em que situação se encontra o sistema educativo e o sistema de saúde? Quais os níveis de pobreza na sociedade ucraniana? Ou será que a U.E. o que pretende é ter mão-de-obra barata provinda da Ucrânia? Boa formação técnica a menos de metade do custo, que pode ser utilizada de forma “flexível”, nas obras, eles, como empregadas domésticas, elas, mesmo que sejam doutores ou engenheiros. As decadentes classes médias europeias adoram ter empregadas domesticas ucranianas, é fino ter a limpeza da casa feita por uma doutorada e é mais higiénico de que usar uma africana ou uma brasileira, já que a maioria dos latino-americanos de fala hispânica preferem emigrar para os USA. Esta é, sem dúvida, uma questão “estrutural e estruturante”.
           
IV - A divisão dos centros de decisão, governo central/governos regionais é uma questão que deverá ser debatida em todas as emendas ou alterações constitucionais. Não apenas pelas questões de integração na economia-mundo, ou nos novos estados produzidos pela economia-mundo, ou ainda porque essa é a única forma de exercer a soberania popular quando esta entra em contradição com a soberania nacional (além de ser o único mecanismo constitucional capaz de fazer gorar as tentativas imperiais de redesenhar mapas, Estados e fronteiras). Os USA representam um exemplo histórico deste fenómeno, quando as 13 colonias criaram o Estado, ou em 1860, quando da secessão dos Estados do Sul. A independência da Ucrânia no período 1991-1996 é outro exemplo deste fenómeno, que apenas pode ser resolvido constitucionalmente.

Na Ucrânia esta questão volta a assumir preponderância, com o referendo na Crimeia. E é, no mínimo, anedótico questionar da legitimidade deste acto, por 4 razões óbvias: 1) O governo legítimo ucraniano (nascido da soberania popular) foi derrubado e a Constituição desrespeitada; 2) O novo governo interino de Kiev não é legítimo; 3) O novo governo é ultranacionalista e não respeita as comunidades que historicamente residem no território ucraniano (tártaros, russos e judeus); 4) em consequência desta política ultranacionalista o governo ucraniano agiu contra as comunidades e tornou-se numa ameaça para estas. Mesmo os tártaros, que desconfiam dos russos, sentem-se desconfortados com o governo ucraniano.

O ultranacionalismo (e o nacionalismo de alcova, ou a estreita visão da “defesa dos interesses nacionais” tipo “o que é nacional é bom”) e a centralização politica não conseguem resolver os problemas regionais, as divisões territoriais e as especificações culturais. Estes assuntos já estavam presentes na independência da Ucrânia, na década de 90. Estruturas federais versus estruturas unitárias é a questão que deve ser colocada no momento presente, para preservar, readquirir e reforçar soberania, mas que não foi aplicada na Ucrânia (ao contrario do que aconteceu nos USA, quando da independência, ou na Rússia, que já tinha desenvolvido as estruturas federais na URSS e que as apurou no pós-URSS para não se desintegrar, como aconteceu com a Jugoslávia, que optou por um modelo colegial, nada adaptado ás novas realidades e necessidades autonómicas das diversas regiões. O modelo federal autogestionário foi eficaz no período de reconstrução da Jugoslávia do pós-guerra, mas a sua restruturação pecou pelo facto de manter uma hierarquia de centralidades, ou seja, tornou-se num conjunto de governos centrais).

Por outro lado é óbvio que os USA não possuem interesses vitais (geoeconómicos) na Ucrânia ou na Crimeia. Ao movimentarem os F-16 para a Polónia e ao aplicarem sanções, os USA estão jogar ao nível geoestratégico (não têm um plano geopolítico definido para a região, pelo que não podem passar do nível geoestratégico), o que torna a situação perigosa. Neste sentido a incompetência dos USA é monumental e tem um longo percurso histórico, espalhando pelo mundo a sua incapacidade em determinar uma estratégia geoeconómica e em muitos casos, uma definição geopolítica, sequer, dos quais o Vietname, Líbano, Irão, Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria são apenas exemplos.

Os seus objectivos, por serem meramente geoestratégicos (e mesmo nos casos em que são geopolíticos), ignoram o fundamental: a História, a Cultura e a Geografia Politica e Humana das áreas onde movimentam os seus pretensos interesses. No imaginário da elite politica e económica dos USA, reside a possibilidade mítica de criar Estados-espelhos, Estados que espelhem o Estado norte-americano. Esse é o ponto máximo da geopolítica dos USA. O resto é a geoestratégia costumeira de pressionar a Rússia, estabelecer-se nas suas fronteiras e afectar o que considera serem os interesses russos (leitura que muitas vezes é errada, porque feita por comentadores e analistas dos movimentos da bolsa, para os quais Wall Street é o mundo e o resto é paisagem e ornamento). Claro que os executivos, senadores e congressistas norte-americanos estudaram eventualmente Ciências Politicas, mas, aparentemente, não compreenderam a sua aplicação. Isto conduz a que, na grande maioria dos casos, não façam ideia de onde estão, realmente, a meter-se. 
  
Atendendo á experiencia constitucional dos USA, o federalismo é uma combinação de autogestão e de gestão partilhada, assente na descentralização de decisões. Cada sistema, federal ou não, deve definir nesta base o seu equilíbrio, factor fundamental para a divisão e partilha de poderes. A política motora de desenvolvimento tem de assentar neste equilíbrio, só possível através da subordinação do Estado á soberania popular. Atendendo á experiencia histórica-constitucional dos USA, quem é Obama para pronunciar um veredicto sobre a Crimeia? O que sabe Obama e o seu estilhaçado clã democrata (estilhaçado em relação ás origens étnicas: afro-americanos, hispano-americanos, irlandeses, italianos, gregos, leste-europeus, judeus, asiático-americanos e negros americanos, que rejeitam e bem as suas raízes afro, alegando que são norte-americanos á demasiadas gerações para terem influencias afro) ou os abutres malcheirosos dos clãs republicanos (com menos estilhaços étnicos, pelo menos ao nível da epiderme), o que sabem esses senhores da Ucrânia?

Atendendo á experiencia constitucional norte-americana, o que Obama e seus muchachos, brothers e partners deveriam dizer era que esta é uma situação delicada, que obriga a um profundo conhecimento dos factores históricos e culturais e que a melhor posição é a de não interferência, oferecendo os serviços dos USA para a discussão e mediação, se requeridos, assegurando um desenvolvimento pacífico da situação. E reconhecerem que a Crimeia tem uma longa História de laços e elos com a Rússia e com a Ucrânia e que russo e ucranianos estão em melhor posição de resolver as suas próprias dificuldades, dentro do âmbito histórico do seu relacionamento. No fundo, afirmar, que os USA não têm qualquer intenção de interferir nos assuntos internos da Ucrânia, da Crimeia e da Rússia.

Mas o que estudaram de Ciências Politicas não dá para tanto! Ou então não estudaram, cabularam. É que estudar é compreender…

Na foto: 95,7% da Crimeia “mostra o dedo” para o tirano da Casa Branca - Vladimir Putin, por Aislin – 2014, em redecastorphoto.blogspot.com

Fontes
Hesli,Vicki Public support for the devolution of power in Ukraine: Regional patterns. Europe-Asia Studies, vol. 47, No. 1, 1995
Snyder, Timothy Bloodlands: Europe Between Hitler and Stalin, Yale University Press, 2012.

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