Baptista-Bastos
– Diário de Notícias, opinião
O
dr. Cavaco e o dr. Passos ignoraram, com ostensivo desagrado, o Grammy
atribuído a Carlos do Carmo. O País regozijou-se com o prémio ao grande cantor,
na alegria de quem vê recompensado um dos seus. As acções ficam com quem as
pratica, e envolvem, habitualmente, a pessoa individual. Porém, neste caso,
atingem as instituições que aqueles dois senhoritos transitoriamente
representam. O dr. Cavaco e o dr. Passos, em si mesmos, são irrelevantes: mas
as duas presidências, a da República e a do Conselho de Ministros, não o são.
Corporizam o Estado e as normas que o constituem. Carlos do Carmo tem
criticado, com a veemência que lhe assiste, mas com a elegância que o
qualifica, a acção daqueles que tais. Sentiram-se atingidos, pessoalmente, mas
não o foram, institucionalmente, reagindo, rancorosos e minúsculos, com a birra
da omissão. Não é, apenas, feio: o acto é odioso porque revela a dimensão do
carácter medíocre de duas pessoas, infensas à crítica e demasiado cheias de si
próprias para sequer admitirem os reparos de quem tem por dever assumir a
cidadania.
A
dignidade das funções exigiria, de qualquer dos que tais, um sinal de grandeza;
e a decência, constante na ética, imporia um assomo de civilidade. Nesta triste
omissão reside um vestígio de autoritarismo insuportável. Autoritarismo, aliás,
frequentemente demonstrado por ambos os comparsas. O dr. Cavaco excomunga quem
não afine pelo seu diapasão, caso, entre demais, da perseguição sórdida a José
Saramago; e o dr. Passos expurga quem o afronte: neste assunto, o dr. António
Capucho. Mas há mais: a lista das exclusões praticadas pela parelha, além das
morais, é de molde a deixar com espasmos no esófago o mais desentendido de
todos nós.
Com
estes dois ninguém está a salvo, e a teia reticular de interesses, criada, por
um ou por outro, ao longo destas décadas, e mantida através de uma fileira de
acólitos estipendiados, tem impedido, até agora, a acção da justiça e a punição
dos prevaricadores. O Estado, este em que vivemos, não é propício a quem
manifesta a dissidência. E o silêncio dos intelectuais possui o formato de uma
capitulação, sem paralelo na nossa história. O perigo do desabar da democracia
não é despiciendo. Os bárbaros estão às portas de Bizâncio, e há quem continue
a assobiar para o lado ou a discutir o sexo dos anjos.
Carlos
do Carmo é mais um episódio a acrescentar às façanhas de quem tem reduzido a
pátria ao mesquinho da mesquinhez. O grande artista, pelo contrário, tem-na
elevado, cantando-a, e à lírica das ruas e dos bairros, com a força e o amor
genuínos de quem fala de um mundo conhecido e estremecido. A "atmosfera de
finitude", referida pelo meu saudoso amigo Luís Fontoura, tem muito a ver
com aqueles dois, por aquilo de funesto que representam.
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