JOSÉ VÍTOR MALHEIROS - Público
Pode
não se gostar das cores usadas pelo artista, mas Portugal na forca é
apenas um retrato do país
Um
estudante de Artes Visuais da Universidade do Algarve foi recentemente acusado
de ter cometido o crime de “ultraje à bandeira nacional” devido a uma obra que
apresentou e exibiu publicamente no final do seu curso. A obra, apresentada há
já cerca de um ano, consistia numa forca de cuja corda pendia uma bandeira
nacional e chamava-se, algo literalmente, Portugal na forca, tendo valido
ao artista a nota final de curso de 17 ou 18 valores (segundo as fontes).
Na
sequência de uma denúncia, o estudante foi acusado pelo Ministério Público de
desrespeitar o artigo 332 do Código Penal e foi apresentado a tribunal, devendo
a leitura da sua sentença ter lugar no próximo dia 7 de Julho. O artigo do
Código Penal em causa diz, no seu parágrafo primeiro, que “quem publicamente,
por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação
com o público ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou
emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é
punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Esta
história é tanto mais surpreendente quanto desde há anos que todos nós vemos um
grupo de cidadãos, com deveres constitucionais muito mais exigentes que os que
se podem atribuir a um estudante de Belas-Artes, desrespeitar não só a
bandeira, como os compromissos solenes que assumiram perante o povo, único
soberano que existe em Portugal.
De
facto, há anos que vemos os membros do actual Governo ultrajar reiteradamente a
bandeira nacional, ostentando-a na lapela, ao mesmo tempo que minam a soberania
nacional que essa bandeira representa, sem que o Ministério Público tenha tido
o mesmo sobressalto.
É
para mim difícil conceber o que seja o “ultraje à bandeira”, porque uma
bandeira não passa de um pedaço de pano colorido, mas parece evidente que um
crime contra um símbolo apenas pode ser considerado um crime porque simboliza
um verdadeiro crime. Ou seja: apenas se pode considerar que o “ultraje à
bandeira nacional” é um crime, se se considerar que o ultraje à soberania
nacional é um crime. Trata-se, de alguma forma, de um crime por metonímia. O
que não faz absolutamente nenhum sentido é considerar que o “ultraje à bandeira
nacional” é um crime porque a bandeira representa a soberania nacional, mas que
um atentado contra a soberania nacional, submetendo o país aos interesses de
potências estrangeiras e ignorando os direitos do povo soberano, não tem a
mínima importância.
É
verdade que essa foi a atitude do Estado Novo que, como todos os regimes
nacionalistas, tentou impor um culto religioso e temeroso dos símbolos, das
bandeiras, dos hinos, das fardas e dos emblemas nacionais, ao mesmo tempo que
atropelava os direitos do povo, mas nesse caso tratava-se de impor o medo,
criando tabus cujos juízes eram os usurpadores. Esta atitude não tem sentido
num país democrático. É tão ridículo o processo movido contra o estudante Élsio
Menau, como o que foi aberto (mas logo fechado) contra Cavaco Silva e António
Costa por terem içado a bandeira nacional de pernas para o ar no 5 de Outubro.
Se, no último caso, se tratou de um acidente, no primeiro tratou-se não só de
um acto de criação artística, mas de uma declaração política, em
que se denuncia uma situação de absoluta indignidade e de risco de
sobrevivência para o país. Portugal na forca é, apenas, um retrato do
país. Pode não se concordar com a perspectiva ou não se gostar das cores usadas
pelo artista, mas é apenas um retrato. Em que consiste o seu suposto atentado a
valores essenciais? Em nada.
Que prejuízos causa? Nenhum. O processo e julgamento contra o
seu autor não pode ser considerado outra coisa que não um processo político,
que pretende domesticar o protesto cívico – tantas vezes de mãos dadas com
a liberdade artística. Um péssimo serviço à soberania e, pior ainda, à
democracia.
Os
seus defensores sublinham que o estudante tratou a bandeira “com
respeito” – e, de facto, é difícil ver aqui algum ultraje a alguém ou a
algum valor moral –, mas a questão não é essa. A liberdade artística, que não é
mais do que a liberdade de expressão, contém um valor que é socialmente superior
ao “respeito” dos símbolos e das instituições. O “respeito” dos símbolos e das
instituições não é mais do que uma imposição do statu quo, que está na
base de todas as limitações de liberdade e da perpetuação de todas as
opressões. O discurso dos direitos humanos sempre foi um discurso contra o
“respeito” das autoridades instituídas e dos seus símbolos. É evidente que pode
haver abusos da liberdade de expressão que sejam sentidos como uma agressão e
que provoquem uma repulsa violenta generalizada, mas Portugal na forca não
se encaixa nessa categoria. Tudo o que faz é obrigar-nos a discutir o país. E a
reparar naquelas bandeirinhas de lapela que os governantes ostentam, com um
sorriso descarado de impunidade.
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